Geografia Documental de Armando de Almeida Fernandes – um Inédito
João Silva de Sousa *
A Geografia, como todos sabemos, tem como objectivo estudar o espaço produzido através das relações entre o Homem e o Meio, o que envolve aspectos desde os dialéticos aos fenomenológicos. E se falamos de espaço produzido é pelo facto de ele poder resultar da acção mais ou menos lentamente desenvolvida pelos homens que o habitam quando nele se instalam, ou sempre que novos habitantes o escolhem para viver e no mesmo se acomodam, operando-se por lá sucessivas mutações. Para Paul Vidal de la Blache, a Geografia é a Ciência dos lugares(1). Já quanto a Hartshorne, ela é a Ciência da diferenciação de áreas(2).
Estes autores colocaram na cena científica e no campus da teorização definições de Geografia, conforme a inclinação dos seus objectivos, classificando-a de um modo extremamente redutor.
Com um propósito de estudo e exposição de resultados, Almeida Fernandes foi um Geógrafo com uma visão muito mais alargada, fazendo os seus estudos de Geografia e História, mas tendo sempre em consideração o papel inevitavelmente importante das demais ciências, cuja lateralidade nos tem proporcionado um conhecimento das situações mais preciso e amplo. Assim tomamos conta da sua História à medida do terreno em que os factos se passaram e da sua Geografia, enquanto vemos a História a apropriar-se dela e das suas variadas características.
Ora, a “ciência dos lugares” e a “da diferenciação das áreas no terreno”, quer uma quer outra, estudam, em comum, a ligação física de perímetros terrenos, aldeias e vilas com as cidades que lhes estão mais próximas, tendo em conta os acidentes geográficos que possam facilitar ou dificultar o acesso ou o escoamento de produtos e notícias, tendentes ao desenvolvimento das gentes que as habitam. Não é por acaso que no foral de Viseu outorgado por D.Teresa, a infanta fala dos seus comerciantes, nem são acidentais as múltiplas referências que, desde muito cedo, a documentação portuguesa refere almocreves, marceiros, recoveiros, até mesmo peixeiras e padeiras, além de regateiras, entre outros.
Na Idade Média, mesmo em tempos mais recuados e noutros posteriores ao século XV, as famílias recolhiam-se aos centros urbanos localizados em pontos mais elevados e fortificados – castelos, castros, penelas, penas, pedras “plantadas”… –, pela ameaça de estranhos que lhes punham os bens e a própria vida em perigo.
Automaticamente, os mais pequenos núcleos habitacionais - como aqueles cujas tipologias referimos -, tinham de prover o centro urbano com gentes, armas e géneros que lhes dessem tempo a fazer levantar os cercos que o inimigo lhes impunha. Mutatis mutandis, é possível estabelecer um paralelo entre a “Geografia Física” e a “Geografia Humana” e dar sempre conta dos desaires ou da fortuna na História, como se fossem e são (não tenhamos dúvidas) dependentes uma da outra. A vida das famílias nesses lugares dependia, pois, do modo de fazer frente aos cercos ou da destruição total de pequenos aldeamentos sem meios de defesa. Ou seja, o espaço habitado por famílias podia ajudar ou não à própria continuidade das pequenas células que neles se instalavam, se tivessem sido fixados em planaltos e estes se vissem murados e defendidos por grandes blocos de pedra que, inclusive, a própria lei chegou a proteger.
Tenhamos em igual conta que os mais ricos, nas sociedades de então, eram compelidos a defender os mais necessitados num quadro feudal e pré-feudal. Os mais pobres que se alojavam, em caso de perigo, nos paços senhoriais, cercados de muros feitos de madeira ou de pedra, nas cortes aldeãs, também eles, como meio de um pagamento comum, deviam protecção e meios de subsistência ao senhor a quem se encomendavam. Era assim, por todo o lado. Foi nas Astúrias, na Galiza, e em Portucale e Coimbra, e daqui em diante, por toda a Hispânia e na Europa Central e do Sul, mais nitidamente.
Sabemo-lo através de documentos exarados pelo homem no seu núcleo urbano, na cidade, e em textos como a obra que referimos em epígrafe, ainda hoje inédita(3).
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Escrever uma Geografia Documental nos últimos anos de vida é para um Historiador muito mais que refazer um passado longínquo, uma resenha intensa de dados ainda a justificarem nomes, locais, gentes, aspectos interiores e influências externas, modos de combinar as sociedades antigas com os primeiros séculos do nosso Reino, na vastidão de um Passado Histórico longo, repleto de povos que tornaram as terras da nossa Península, aquosas e movediças, em solos de verdes e secos… quadriculados milimetricamente, habitados por homens e mulheres com suas famílias e animais domésticos que, às centenas, chegavam e partiam, para se moverem para locais próximos.
Instalavam-se nos seus espaços limitados por marcos e montes e utilizavam barcas (barcos de passagem que indiciam a necessária travessia de rios e riachos que confrontavam ou cruzavam os chãos), definidos, geograficamente, ainda por serras e leiras, montes e baldios, “pois que lho são limites”…, como, por exemplo, se nos dá a conhecer, entre muitos outros casos e diplomas, numa charta autographa do ano de 1121-1128, relativa a Guedixe, freguesia de Penajóia, concelho de Lamego.
E no excerto se acha escrito que fazia fronteira com outras, através de montes, leiras e termos fortificados, até ao rio. Eram as marcações da época, talvez ainda hoje em uso, um pouco por todo o lado no nosso País.
São notáveis as páginas de toponímia e micro toponímia especializada e informativa. A “geografia” está aqui bem representada por montes e rios e por seixos, fontes e regos de água fresca das chuvas, por peças orvalhadas e matizadas pela geada e pela neve, tal como a conhecemos hoje. Possidentes delas eram famílias que advinham de um tronco comum e que se instalavam perto umas das outras. São inúmeras as árvores genealógicas expostas a comprovarem-no.
A concepção dialética do espaço geográfico entende que a natureza humanizada influencia e é influenciada pela sociedade que produz e reproduz o seu espaço, porque a povoou, cultivou e conduziu o seu gado pelas planícies ao cimo dos montes e destes ao riacho de águas correntes no sopé das quebradas e encostas irregulares. As cadeias montanhosas do Tejo para Norte, ondulam no horizonte com se a água do mar as tivesse desenhado antes.
Salpicando o cenário, existiam minúsculos alódios rústicos de incomuniados, em busca de alguma estabilidade. Tentavam escapar ao peso do dever para com senhores de coutos e honras, latifundiários que eram, que, em fossados, presúrias e hostes, lhes confiavam a manutenção e o desenvolvimento de uma economia, embora estreita. Patenteava-se esta todos os anos, mas mesmo exígua era ela que proporcionava a uns e aos outros tudo o que fosse possível arrancar da terra e ganhar na guerra para o sustento e o desenvolvimento, seu e dos pequenos feudos, que se estavam formando no Norte da Hispânia.
Entre os diversos contratos que se estabeleciam, destacavam-se os ad populandum e ad plantandum que se tornaram frequentes já nos primeiros tempos das lutas contra os infiéis. O foro exigido pelos possidentes, ou nobres, aos pobres sem coisa sua era relativamente oneroso, mas a eventual hereditariedade do contrato ia compensando o cultivador dos esforços no sentido da valorização da terra e da sua permanência e dos seus na mesma.
Uma definição simples poderá também ser tida como o estudo da superfície do terreno e a distribuição espacial no mesmo, de fenómenos geográficos, resultado da relação recíproca entre o Homem e o Meio em que ele vive e trabalha. Assim, a Geografia de Almeida Fernandes estuda as relações entre a sociedade e o lugar, entre a vida e o terreno onde se desenrolaram os mais variados acontecimentos. A Geograficidade delineada neste volumoso e importante texto do nosso autor não apresenta fractura entre a “Geografia Humana” e a “Geografia Física”. Antes as interliga, porque o conhecimento é incomensurável e depende de vectores dos mais mediáticos aos totalmente impensáveis, caindo por terra, as máximas redutoras de quadrantes limitativos da Ciência em causa, e do papel dos Geógrafos e Historiadores.
O nosso autor – Geógrafo, Historiador, Filólogo e Toponimista -, ele mesmo apela à nossa atenção para a Geografia “física” e para a “humana”: nomes e acidentes naturais inter-relacionados e explicitados neste seu estudo original.
Um dos vectores que melhor traduzem a importância dos homens no meio – ou seja, na “Geografia Física” –, é a diversidade toponímica, com todas as suas variadas secções. A Toponímia consiste na divisão da Onomástica que estuda os topónimos ou os nomes próprios dos lugares, da sua origem e do resultado da sua evolução. É também uma parte da Linguística, contando, pois, com férreas ligações com a História, a Arqueologia e a Geografia, naturalmente. Deitando mãos à Semântica, corrige interpretações precipitadas de outros, nas Vinte Opiniões Ilustres, dando lugar a topónimos na Beira-Douro e lamecenses, emendados e explicados na sua origem, e a outros clarificados na Toponímia Portuguesa(4).
O autor explicita por si mesmo o que o levou a escrever o seu inacabado, mas já longo texto e o que ele quis que daí resultasse. E refere por suas próprias palavras: “Não trato aqui […] de toponímia, mas de “geografia” (física e também, discretamente, humana, com figuras de relevo pessoal medievo”, cf. Doc. 111) – Sentimental, como lhe chamaria Aquilino Ribeiro –, envolta em lembranças de um Passado recente. Recordações das horas a fio em que Armando de Almeida Fernandes se sentava à Secretária, com a Geografia explicativa da História, a maior devedora a uma devotada e persistente atenção, fugindo do imenso e milenar palco da vida para ir acomodar-se ao rugoso e pálido papel, para onde ditava dados, interpretações e conclusões.
Almeida Fernandes pensou e trabalhou até ao fim. Foi este o verdadeiro sentido que quis dar à vida. O resultado está na herança de um nome que legara ao País, aos Amigos, à Família, aos Estudantes e Investigadores. Mesmo aos que se lhe opunham, quantas vezes através de comentários grosseiros, porque Almeida Fernandes ia ao âmago das matérias, explicando até ao ínfimo pormenor e vencendo as tradições sempre meramente baseadas em sistemas convencionais e quando havia um só autor que fosse que não quisesse vê-las abatidas e substituídas, quantas vezes por uma mera questão sentimental. Eram matérias de “folclore”, de colorido lendário fabuloso fabricado pelo conto e reconto populares que, na História, só por si, não colhiam.
Dirige-se, sobretudo, às futuras gerações que lhe seguem as linhas de rumo, em teses inspiradas, mas que partem das antigas imensas clareiras pedagógicas e científicas em que foi empilhando centenas de estudos. Trabalhou até ao fim: pela Toponímia e a História do nosso País. Dos pré-romanos, dos Suevos e Godos…, dos Muçulmanos e Nórdicos, aos inícios das Astúrias…, essencialmente até ao século XII.
A par do trajecto temporal que projecta neste seu livro, a Geografia assume-se com a dimensão da Galiza e das Astúrias, de Leão e Castela. E daqui a Portugal: do Minho à distante linha do Tejo.
Na presente obra, corremos, então, do Tejo à Galiza.
Começámos por escalpelizar excertos documentais, nos mais variados items e aproximámo-nos, por coincidência, da Geografia que foi o palco da sua vida.
Vimos, claramente, que o Historiador se socorreu do que ele mesmo visualizou nos seus itinerários para certificação e apuramento da verdade; de ciências várias, da orgânica de institutos religiosos, e religiosos e militares, da Arqueologia, Toponímia e Antroponímia. Foi à raiz das palavras, a sufixos, prefixos e radicais, aos étimos pré-romanos, latinos, gauleses, celtas e germânicos principalmente suévico-visigodos e árabes.
Achou algo muito curioso. O nosso País teve a sua origem (como todos os demais Estados da Península) no desenvolvimento de técnicas agrícolas que pudessem facilitar a conquista de terrenos para a agricultura, além do inevitável sistema de defesa que ia sendo cada vez mais aparatoso, combinado com a força anímica e física de todos os que sustentavam um forte sentido de protecção e resguardo de suas pessoas, bens, casas, abrigos, e sementeiras.
Surgiram, então, o castro, a castelo a fortaleza, o monte, a serra, a água, a pedra, a rocha, plantas totémicas e anímicas e quantos mais elementos com estes directamente relacionados na origem dos nomes dos lugares, vilas e cidades nos condados do futuro Portugal. Afinal, confirmamos que a Geografia pode, indiscutivelmente, explicar a Toponímia, e esta, por certo, a História. As gentes que por aí residiam, que por lá se fixavam – agricultores e homens de ofícios, além da matéria-prima local –, originaram a Antroponímia. Todos, por junto, clarificaram a razão de ser, pelo significado deduzido dos sistemas em causa, como, por exemplo, dos hidrónimos, ou nomes dos cursos de água (rios, ribeiras e riachos, seus afluentes e confluentes), ou os orónimos: nomes de serras, cordas montanhosas, cabeços, montes, planaltos, colinas e vales…; também de nomes de subdivisões administrativas e de estradas ou simples caminhos e arruamentos, quantos, à época, resultantes do calcorrear continuado dos passantes:
- o monte;
- o rio ou rivulum,
- o mar,
- a lagoa ou llaguna;
- o porto,
- o fosso,
- a fontana…;
Tornaram comuns na documentação, a retoma do uso dos antigos vocábulos:
ager, urbs, villaris, cividade… e, de mistura com outros nossos conhecidos: casal, leira, villa; castro, castelo, cidade..., entre muitos.
Eis a Geografia Documental, título que deu ao seu livro inacabado e inédito:
- as variadas tipologias de acidentes naturais,
- a influência directa destes na origem dos nomes das terras,
- as múltiplas hipóteses que nos são oferecidas, pela ordem inversa.
Assim, os variados acidentes na terra são traduzidos pelos nomes por que os lugares são conhecidos.
De entre os mais de 700 documentos que fizeram a sua obra, encontrámos, extraídos de variadas fontes, como se verificará logo que a obra esteja publicada:
- 80% provindos dos séculos IX a XI, correspondendo os demais a tempos posteriores.
- Ainda, a percentagem dos mesmos aqui constantes se nos apresenta extraordinariamente mais elevada, no que se refere ao Ribadouro: 74%, ficando-se os demais espalhados pelo Sul do Mondego e pelo Norte da Comarca do Entre-Douro-e-Minho, o que demonstra uma nítida preferência e uma óbvia vitalidade demográfica e cultural daquela primeira região nos séculos intermédios da 1.ª fase da “Reconquista”.
Os interesses em causa, num e noutro lado, revelam aspectos materiais e espirituais na geografia documental de ambas as regiões e no espírito dos mandantes que nos surgem bem localizados: importantes famílias de outrora, os condes soberanos, os reis das Astúrias, de Castela e Leão e os Príncipes e cônsul de “Portugale”.
Foi nossa intenção subdividir os documentos por espaços temporais e fazer antecedê-los de uma curta integração dos lugares, das personagens e factos patentes, de uma base explicativa das conjunturas em que eles se integram. Com isto, não pretendemos completar nada. Apenas complementarizar e tornar um tanto mais claros os dados e as abordagens – referidos eles e explanadas estas pelo nosso autor, um dos maiores medievalistas portugueses de sempre, numa das suas obras mais interessantes e importantes para o comum dos historiadores, geógrafos e puristas da etimologia e ortografia portuguesas.
(Conferência proferida em Lamego, a 16 de Fevereiro de 2012, ao assinalar-se o 10.º ano do falecimento de A. de Almeida Fernandes).
Instalavam-se nos seus espaços limitados por marcos e montes e utilizavam barcas (barcos de passagem que indiciam a necessária travessia de rios e riachos que confrontavam ou cruzavam os chãos), definidos, geograficamente, ainda por serras e leiras, montes e baldios, “pois que lho são limites”…, como, por exemplo, se nos dá a conhecer, entre muitos outros casos e diplomas, numa charta autographa do ano de 1121-1128, relativa a Guedixe, freguesia de Penajóia, concelho de Lamego.
E no excerto se acha escrito que fazia fronteira com outras, através de montes, leiras e termos fortificados, até ao rio. Eram as marcações da época, talvez ainda hoje em uso, um pouco por todo o lado no nosso País.
São notáveis as páginas de toponímia e micro toponímia especializada e informativa. A “geografia” está aqui bem representada por montes e rios e por seixos, fontes e regos de água fresca das chuvas, por peças orvalhadas e matizadas pela geada e pela neve, tal como a conhecemos hoje. Possidentes delas eram famílias que advinham de um tronco comum e que se instalavam perto umas das outras. São inúmeras as árvores genealógicas expostas a comprovarem-no.
A concepção dialética do espaço geográfico entende que a natureza humanizada influencia e é influenciada pela sociedade que produz e reproduz o seu espaço, porque a povoou, cultivou e conduziu o seu gado pelas planícies ao cimo dos montes e destes ao riacho de águas correntes no sopé das quebradas e encostas irregulares. As cadeias montanhosas do Tejo para Norte, ondulam no horizonte com se a água do mar as tivesse desenhado antes.
Salpicando o cenário, existiam minúsculos alódios rústicos de incomuniados, em busca de alguma estabilidade. Tentavam escapar ao peso do dever para com senhores de coutos e honras, latifundiários que eram, que, em fossados, presúrias e hostes, lhes confiavam a manutenção e o desenvolvimento de uma economia, embora estreita. Patenteava-se esta todos os anos, mas mesmo exígua era ela que proporcionava a uns e aos outros tudo o que fosse possível arrancar da terra e ganhar na guerra para o sustento e o desenvolvimento, seu e dos pequenos feudos, que se estavam formando no Norte da Hispânia.
Entre os diversos contratos que se estabeleciam, destacavam-se os ad populandum e ad plantandum que se tornaram frequentes já nos primeiros tempos das lutas contra os infiéis. O foro exigido pelos possidentes, ou nobres, aos pobres sem coisa sua era relativamente oneroso, mas a eventual hereditariedade do contrato ia compensando o cultivador dos esforços no sentido da valorização da terra e da sua permanência e dos seus na mesma.
Uma definição simples poderá também ser tida como o estudo da superfície do terreno e a distribuição espacial no mesmo, de fenómenos geográficos, resultado da relação recíproca entre o Homem e o Meio em que ele vive e trabalha. Assim, a Geografia de Almeida Fernandes estuda as relações entre a sociedade e o lugar, entre a vida e o terreno onde se desenrolaram os mais variados acontecimentos. A Geograficidade delineada neste volumoso e importante texto do nosso autor não apresenta fractura entre a “Geografia Humana” e a “Geografia Física”. Antes as interliga, porque o conhecimento é incomensurável e depende de vectores dos mais mediáticos aos totalmente impensáveis, caindo por terra, as máximas redutoras de quadrantes limitativos da Ciência em causa, e do papel dos Geógrafos e Historiadores.
O nosso autor – Geógrafo, Historiador, Filólogo e Toponimista -, ele mesmo apela à nossa atenção para a Geografia “física” e para a “humana”: nomes e acidentes naturais inter-relacionados e explicitados neste seu estudo original.
Um dos vectores que melhor traduzem a importância dos homens no meio – ou seja, na “Geografia Física” –, é a diversidade toponímica, com todas as suas variadas secções. A Toponímia consiste na divisão da Onomástica que estuda os topónimos ou os nomes próprios dos lugares, da sua origem e do resultado da sua evolução. É também uma parte da Linguística, contando, pois, com férreas ligações com a História, a Arqueologia e a Geografia, naturalmente. Deitando mãos à Semântica, corrige interpretações precipitadas de outros, nas Vinte Opiniões Ilustres, dando lugar a topónimos na Beira-Douro e lamecenses, emendados e explicados na sua origem, e a outros clarificados na Toponímia Portuguesa(4).
O autor explicita por si mesmo o que o levou a escrever o seu inacabado, mas já longo texto e o que ele quis que daí resultasse. E refere por suas próprias palavras: “Não trato aqui […] de toponímia, mas de “geografia” (física e também, discretamente, humana, com figuras de relevo pessoal medievo”, cf. Doc. 111) – Sentimental, como lhe chamaria Aquilino Ribeiro –, envolta em lembranças de um Passado recente. Recordações das horas a fio em que Armando de Almeida Fernandes se sentava à Secretária, com a Geografia explicativa da História, a maior devedora a uma devotada e persistente atenção, fugindo do imenso e milenar palco da vida para ir acomodar-se ao rugoso e pálido papel, para onde ditava dados, interpretações e conclusões.
Almeida Fernandes pensou e trabalhou até ao fim. Foi este o verdadeiro sentido que quis dar à vida. O resultado está na herança de um nome que legara ao País, aos Amigos, à Família, aos Estudantes e Investigadores. Mesmo aos que se lhe opunham, quantas vezes através de comentários grosseiros, porque Almeida Fernandes ia ao âmago das matérias, explicando até ao ínfimo pormenor e vencendo as tradições sempre meramente baseadas em sistemas convencionais e quando havia um só autor que fosse que não quisesse vê-las abatidas e substituídas, quantas vezes por uma mera questão sentimental. Eram matérias de “folclore”, de colorido lendário fabuloso fabricado pelo conto e reconto populares que, na História, só por si, não colhiam.
Dirige-se, sobretudo, às futuras gerações que lhe seguem as linhas de rumo, em teses inspiradas, mas que partem das antigas imensas clareiras pedagógicas e científicas em que foi empilhando centenas de estudos. Trabalhou até ao fim: pela Toponímia e a História do nosso País. Dos pré-romanos, dos Suevos e Godos…, dos Muçulmanos e Nórdicos, aos inícios das Astúrias…, essencialmente até ao século XII.
A par do trajecto temporal que projecta neste seu livro, a Geografia assume-se com a dimensão da Galiza e das Astúrias, de Leão e Castela. E daqui a Portugal: do Minho à distante linha do Tejo.
Na presente obra, corremos, então, do Tejo à Galiza.
Começámos por escalpelizar excertos documentais, nos mais variados items e aproximámo-nos, por coincidência, da Geografia que foi o palco da sua vida.
Vimos, claramente, que o Historiador se socorreu do que ele mesmo visualizou nos seus itinerários para certificação e apuramento da verdade; de ciências várias, da orgânica de institutos religiosos, e religiosos e militares, da Arqueologia, Toponímia e Antroponímia. Foi à raiz das palavras, a sufixos, prefixos e radicais, aos étimos pré-romanos, latinos, gauleses, celtas e germânicos principalmente suévico-visigodos e árabes.
Achou algo muito curioso. O nosso País teve a sua origem (como todos os demais Estados da Península) no desenvolvimento de técnicas agrícolas que pudessem facilitar a conquista de terrenos para a agricultura, além do inevitável sistema de defesa que ia sendo cada vez mais aparatoso, combinado com a força anímica e física de todos os que sustentavam um forte sentido de protecção e resguardo de suas pessoas, bens, casas, abrigos, e sementeiras.
Surgiram, então, o castro, a castelo a fortaleza, o monte, a serra, a água, a pedra, a rocha, plantas totémicas e anímicas e quantos mais elementos com estes directamente relacionados na origem dos nomes dos lugares, vilas e cidades nos condados do futuro Portugal. Afinal, confirmamos que a Geografia pode, indiscutivelmente, explicar a Toponímia, e esta, por certo, a História. As gentes que por aí residiam, que por lá se fixavam – agricultores e homens de ofícios, além da matéria-prima local –, originaram a Antroponímia. Todos, por junto, clarificaram a razão de ser, pelo significado deduzido dos sistemas em causa, como, por exemplo, dos hidrónimos, ou nomes dos cursos de água (rios, ribeiras e riachos, seus afluentes e confluentes), ou os orónimos: nomes de serras, cordas montanhosas, cabeços, montes, planaltos, colinas e vales…; também de nomes de subdivisões administrativas e de estradas ou simples caminhos e arruamentos, quantos, à época, resultantes do calcorrear continuado dos passantes:
- o monte;
- o rio ou rivulum,
- o mar,
- a lagoa ou llaguna;
- o porto,
- o fosso,
- a fontana…;
Tornaram comuns na documentação, a retoma do uso dos antigos vocábulos:
ager, urbs, villaris, cividade… e, de mistura com outros nossos conhecidos: casal, leira, villa; castro, castelo, cidade..., entre muitos.
Eis a Geografia Documental, título que deu ao seu livro inacabado e inédito:
- as variadas tipologias de acidentes naturais,
- a influência directa destes na origem dos nomes das terras,
- as múltiplas hipóteses que nos são oferecidas, pela ordem inversa.
Assim, os variados acidentes na terra são traduzidos pelos nomes por que os lugares são conhecidos.
De entre os mais de 700 documentos que fizeram a sua obra, encontrámos, extraídos de variadas fontes, como se verificará logo que a obra esteja publicada:
- 80% provindos dos séculos IX a XI, correspondendo os demais a tempos posteriores.
- Ainda, a percentagem dos mesmos aqui constantes se nos apresenta extraordinariamente mais elevada, no que se refere ao Ribadouro: 74%, ficando-se os demais espalhados pelo Sul do Mondego e pelo Norte da Comarca do Entre-Douro-e-Minho, o que demonstra uma nítida preferência e uma óbvia vitalidade demográfica e cultural daquela primeira região nos séculos intermédios da 1.ª fase da “Reconquista”.
Os interesses em causa, num e noutro lado, revelam aspectos materiais e espirituais na geografia documental de ambas as regiões e no espírito dos mandantes que nos surgem bem localizados: importantes famílias de outrora, os condes soberanos, os reis das Astúrias, de Castela e Leão e os Príncipes e cônsul de “Portugale”.
Foi nossa intenção subdividir os documentos por espaços temporais e fazer antecedê-los de uma curta integração dos lugares, das personagens e factos patentes, de uma base explicativa das conjunturas em que eles se integram. Com isto, não pretendemos completar nada. Apenas complementarizar e tornar um tanto mais claros os dados e as abordagens – referidos eles e explanadas estas pelo nosso autor, um dos maiores medievalistas portugueses de sempre, numa das suas obras mais interessantes e importantes para o comum dos historiadores, geógrafos e puristas da etimologia e ortografia portuguesas.
(Conferência proferida em Lamego, a 16 de Fevereiro de 2012, ao assinalar-se o 10.º ano do falecimento de A. de Almeida Fernandes).
* Professor de História Medieval da FCSH da UNL, Académico Correspondente da Academia Portuguesa da História, Sócio Correspondente da Sociedade de Genealogia Portuguesa
(1) Preston E. James & Geoffrey W. Martin. After All Possible Worlds: A History of GeographicalIdeas, 2.ª ed., p.194."Paul Vidal de la Blache - A biographical sketch by Jason Hilkovitch & Max Fulkerson". http://wwwstage.valpo.edu/geomet/histphil/test/vidal.html. Retrieved 2006-09-23. Paul L. Knox & Sallie A. Marston. Human Geography, Third Edition, p. 181. Cada um destes especialistas apresentaram dissertações sobre Geografia Regional. Ver ainda, Demangeon, La plaine picarde : Picardie. Artois. Cambrésis. Beauvaisis. Étude de géographie sur les plaines de craie de la France du Nord de la France (1905); Blanchard, La Flandre. Étude géographique de la plaine flamande en France. Belgique. Hollande (1906); Cholley, Les préalpes de Savoie (Genevois/Bauges) et leur avant-pays : étude de géographie régionale (1925); Baulig, Le plateau central et sa bordure méditerranéenne : étude morphologique (1928); Martonne, La Valachie : essai de monographie géographique (1902).
(2) Cfr. cit. acima.
(3) Cf. A. de Almeida Fernandes, Geografia Documental, original manuscrito datado de Tarouca, 2002, ainda em fase de ed. crítica a publicar.
(4)Ver A. de Almeida Fernandes, Toponímia Portuguesa. Exame a Um Dicionário, Arouca, 1999. Complementarmente, consulte-se J. Leite de Vasconcellos, Antroponimia Portuguesa, Lisboa, 1928.
(2) Cfr. cit. acima.
(3) Cf. A. de Almeida Fernandes, Geografia Documental, original manuscrito datado de Tarouca, 2002, ainda em fase de ed. crítica a publicar.
(4)Ver A. de Almeida Fernandes, Toponímia Portuguesa. Exame a Um Dicionário, Arouca, 1999. Complementarmente, consulte-se J. Leite de Vasconcellos, Antroponimia Portuguesa, Lisboa, 1928.