CORTES DE 1361
Capítulos Especiais de Cortes apresentados pela cidade de Coimbra
Capítulos Especiais de Cortes apresentados pela cidade de Coimbra
Marco Monteiro, historiador
As Cortes medievais portuguesas compõem um leque variado de documentação de âmbito legislativo que ao longo de séculos espelharam a organização político-administrativa desenvolvida pelos vários reinados portugueses. Na verdade, mais do que um corpo legislativo, as Cortes permitem ao historiador retirar a mais vasta informação sobre os aspectos sócio-económicos, mas também sócio-culturais que compõem a sociedade por estas retratadas..
Definida pela maioria dos historiadores como uma instituição política, as Cortes medievais portuguesas não podem nem devem ser estudadas de uma forma credível, pois não eram de forma alguma o retrato do reino e dos seus verdadeiros problemas, mas sim a visão que muitas vezes as elites de homens-bons dos concelhos queriam transmitir ao rei.(1) Desta feita, devemos ter em conta não apenas aquilo que os textos relatam, mas também a substância que omite, ou seja, os silêncios mais recônditos.
Se analisarmos atentamente o conteúdo que compõe as Cortes medievais portuguesas verificamos que dela fazem parte um leque variado de documentação, nomeadamente alguns acordos, certidões de auto, conselhos, decisões régias, declarações de leis, avisos, ordenações e capítulos, entre outros. Na realidade, os capítulos são aqueles que mais abundam nas nossas cortes, existindo capítulos gerais do clero, da nobreza e ainda do povo, sendo estes últimos em maior número.
Os textos que nos propomos a analisar constituem capítulos especiais que foram apresentados ao rei na cidade de Coimbra. Os capítulos desta natureza, designados de especiais, são mormente do clero e do povo, existindo ainda os especiais de concelhos e de regiões administrativas e do Algarve relacionado com o terceiro estado.(2)
São precisamente alguns desses capítulos especiais de Cortes, redigidos nas câmaras municipais, de grande interesse local e que adquirem o valor de privilégios, que tentaremos analisar e comentar de uma forma sucinta mas abrangendo simultaneamente os aspectos jurídicos, económicos, sociais e ainda culturais.
(1) DUARTE, Luís Miguel, Justiça e Criminalidade no Portugal Medievo (1459-1481), Lisboa, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Ministério da Ciência e da Tecnologia, Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 28.
(2) SOUSA, Armindo de, As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490), Vol. I, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro de História da Universidade do Porto, 1990, pág. 476.
(2) SOUSA, Armindo de, As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490), Vol. I, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro de História da Universidade do Porto, 1990, pág. 476.
Análise documental - 1º documento
Neste primeiro documento que compõe os capítulos especiais de Coimbra podemos confirmar o que anteriormente foi referido: são apresentados ao monarca pelos homens-bons do concelho da cidade de Coimbra e seu termo, e desenvolvem um escrito de agravamentos levado a cabo pelos oficiais régios sobre a povoação.
Antes de analisarmos ao pormenor o tipo de problemas que são apresentados, uma breve introdução ao documento deverá ser feita. Tendo como emissor o rei D. Pedro I (1357-1367), que dirige esta carta ao concelho da cidade de Coimbra e seu termo, o documento foi redigido em Elvas no dia 27 de Maio de 1399 (1361 da Era de Nosso Senhor Jesus Cristo), teve como emissário o vassalo do monarca, Jhoanes Steues, e como redactor Afonso mygees.
É notório ao longo de todo o texto a distinção das designações cidade e termo, separando o espaço amuralhado próprio da cidade medieval, do espaço extra-muros. Na realidade, as divergências lexicais não ficam por aqui, pois também termos como moradores e vizinhos(1) são enunciados inúmeras vezes, marcando desde já os diferentes estatutos de índole urbano.
Representando o povo e apelando ao monarca pelo seu sentido de justiça, os homens-bons do concelho enunciam uma série de reclamações e reivindicações, em sua grande parte com base nas prerrogativas determinadas pelo foral do respectivo concelho da cidade de Coimbra. No entanto, outras existem que são fundamentadas somente pelo uso costumeiro, ou seja, por aquilo que há anos “...he custume antigo da dicta Çidade [...]”(2), e que de repente mudara sem razão de ser.
Como é sabido, dois tipos de poder estão representados na malha urbana: o poder local e o central. O primeiro é constituído pelos juízes, vereadores, procuradores e homens-bons do concelho, enquanto que o segundo constituí um leque muito mais extenso de funcionários régios. Na verdade, este poder central, aquele que representa o rei junto das populações, está bem presente nestes capítulos de Cortes e demonstra a preocupação do monarca em tirar proveito daquilo que é seu por direito, seja uma quota parte dos lucros da venda de determinado produto ou mesmo os inúmeros bens imobiliários que possuía.
O monarca não deixa qualquer dúvida quando se refere “... mha Adega [...] E que esse vijnho meu”(3), ou “...os meus Rendeyros”(4), e ainda “... mando que os meus mõordomos façam as penhoras pellos meus direitos [...]”(5)
Defender os seus direitos e assegurar que o seu quinhão não andava em mãos alheias implica a presença de inúmeros funcionários régios, nomeadamente, almoxarifes, escrivães, porteiros, costumeiros, alcaides, vedores, entre muitos outros responsáveis pela fiscalização régia.
No entanto, o abuso de poder exercido por algumas destas autoridades régias era uma constante. Senão, vejamos o caso em que os vizinhos de Coimbra vão comprar vinhos e outros produtos fora do termo desta cidade e que, mesmo se os venderem fora desta malha urbana, não se livram do pagamento de portagem exigido pelo vedor e escrivão da portagem do rei. Esta situação é uma entre muitas em que os moradores e vizinhos alegam ser “...contra o seu foral em que dizem que hu vender e hu comprar hij paguem A portagem.”(6) Ou ainda o desrespeito pelo estatuto que alguns dos habitantes do meio citadino possuem, tais como os vizinhos que são obrigados ao pagamento “...em cada huu Anno Senhos ssoldos (7) por vyzynhança”, entre o período que vai desde o dia de S. Martinho até ao dia de Natal e que se expirarem este prazo em um ou dois dias terão de pagar “...Portageens e custumageens como de nom vyzynhos [...]” exigidos pelos portageiros.(8)
Exemplos como estes demonstram as ilegalidades praticadas por vários oficiais régios e que levam mais tarde a reivindicações e reclamações por parte dos moradores das cidades e respectivos termos.
Outras situações existem que levam também a desavenças entre a população e os representantes régios. Ao contrário dos exemplos que anteriormente referimos, estes casos não estão contemplados no foral da cidade mas fazem parte do costume antigo, tais como “...he custume antigo da dicta Cidade que em no tempo do Relego ssejam // duas tauernas Abertas cada ffreegijssya da dicta Cidade [..]”, queixando-se os moradores que os rendeiros da adega do rei não deixam abrir essas tabernas “...saluosse lhys derem quanto elles quisserem e que aas vezes pedem tanto que Aquelles que os vynhos teem pera vender nom entendem hy ssa prol em lho dar [...]”.(9)
Apesar de inúmeras as queixas referentes ao abuso de poder por parte destes oficiais, outras havia que se relacionavam com infracções ao que fora estipulado ou mesmo com atitudes que os moradores consideravam injustas e muito pouco benéficas para o desenvolvimento da cidade. O caso em que o monarca ordena que o seu homem mantenha a casa que possui nos açougues do rei aberta para “...que os Almocreues que veem com vynho de ffora aa noyte ante daquella [...]”, não encontrem as portas fechadas e não se deitem na terra com o respectivo vinho, é um dos exemplos mais concretos daquilo que os moradores achavam injusto e “...que per esto Reçebe o Conçelho e sseus donos grande dano”.(10) Porém, outras atitudes eram consideradas injustas e mostravam inclusive alguma preocupação com o desenvolvimento económico e até demográfico da malha citadina. Por estas razões se queixam ao rei pelo facto dos portageiros cobrarem portagens e costumagens aos mesteirais de outras terras que pretendem instalar-se na cidade e desenvolver o seu ofício, em vez de serem considerados vizinhos e pagarem apenas o soldo. As consequências deste acto por parte dos portageiros leva a que esses mesteirais abandonem a terra “...e despobra sse A Çidade”.(11)
As reclamações e reivindicações são anotadas pelo monarca que na maioria das vezes ordena que sejam averiguadas tais ocorrências, que o informem mais detalhadamente das infracções que foram cometidas e há quanto tempo isso se mantém. Doutras vezes, quando a infracção é sobremaneira evidente e contrária ao foral do concelho, o rei impede que se continue a cometer os mesmos abusos. Finalmente, quando determinadas prerrogativas foram emitidas por outros monarcas anteriores ao seu reinado (como é o caso de seu pai D. Afonso IV ou de seu avô D. Dinis), o rei determina que se mantenha o estipulado pelos seus precedentes. Para os mais teimosos e que reincidam, o monarca manda executar a acção dos seus oficiais de justiça.
Para além de figuras como os almoxarifes, vedores e escrivães, portageiros e mordomos que são muitas vezes acusados de abusos fiscais em seu proveito, outras figuras surgem mencionadas neste texto e que nos transmitem algumas ideias sobre a organização da cidade medieval portuguesa e das regras a que cada concelho estava sujeito. É o caso do alcaide-mor responsável pelo castelo da cidade, “ligado também à autoridade régia [...] onde se acolhia a guarnição responsável pela defesa do núcleo urbano em caso de ataques vindos do exterior”. (12) De acordo com o texto, não era permitido ao alcaide-mor colocar alcaides-menores no castelo “…sse nom que sseia natural da dicta Çidade e AReigado em ella”.(13)
Antes de analisarmos ao pormenor o tipo de problemas que são apresentados, uma breve introdução ao documento deverá ser feita. Tendo como emissor o rei D. Pedro I (1357-1367), que dirige esta carta ao concelho da cidade de Coimbra e seu termo, o documento foi redigido em Elvas no dia 27 de Maio de 1399 (1361 da Era de Nosso Senhor Jesus Cristo), teve como emissário o vassalo do monarca, Jhoanes Steues, e como redactor Afonso mygees.
É notório ao longo de todo o texto a distinção das designações cidade e termo, separando o espaço amuralhado próprio da cidade medieval, do espaço extra-muros. Na realidade, as divergências lexicais não ficam por aqui, pois também termos como moradores e vizinhos(1) são enunciados inúmeras vezes, marcando desde já os diferentes estatutos de índole urbano.
Representando o povo e apelando ao monarca pelo seu sentido de justiça, os homens-bons do concelho enunciam uma série de reclamações e reivindicações, em sua grande parte com base nas prerrogativas determinadas pelo foral do respectivo concelho da cidade de Coimbra. No entanto, outras existem que são fundamentadas somente pelo uso costumeiro, ou seja, por aquilo que há anos “...he custume antigo da dicta Çidade [...]”(2), e que de repente mudara sem razão de ser.
Como é sabido, dois tipos de poder estão representados na malha urbana: o poder local e o central. O primeiro é constituído pelos juízes, vereadores, procuradores e homens-bons do concelho, enquanto que o segundo constituí um leque muito mais extenso de funcionários régios. Na verdade, este poder central, aquele que representa o rei junto das populações, está bem presente nestes capítulos de Cortes e demonstra a preocupação do monarca em tirar proveito daquilo que é seu por direito, seja uma quota parte dos lucros da venda de determinado produto ou mesmo os inúmeros bens imobiliários que possuía.
O monarca não deixa qualquer dúvida quando se refere “... mha Adega [...] E que esse vijnho meu”(3), ou “...os meus Rendeyros”(4), e ainda “... mando que os meus mõordomos façam as penhoras pellos meus direitos [...]”(5)
Defender os seus direitos e assegurar que o seu quinhão não andava em mãos alheias implica a presença de inúmeros funcionários régios, nomeadamente, almoxarifes, escrivães, porteiros, costumeiros, alcaides, vedores, entre muitos outros responsáveis pela fiscalização régia.
No entanto, o abuso de poder exercido por algumas destas autoridades régias era uma constante. Senão, vejamos o caso em que os vizinhos de Coimbra vão comprar vinhos e outros produtos fora do termo desta cidade e que, mesmo se os venderem fora desta malha urbana, não se livram do pagamento de portagem exigido pelo vedor e escrivão da portagem do rei. Esta situação é uma entre muitas em que os moradores e vizinhos alegam ser “...contra o seu foral em que dizem que hu vender e hu comprar hij paguem A portagem.”(6) Ou ainda o desrespeito pelo estatuto que alguns dos habitantes do meio citadino possuem, tais como os vizinhos que são obrigados ao pagamento “...em cada huu Anno Senhos ssoldos (7) por vyzynhança”, entre o período que vai desde o dia de S. Martinho até ao dia de Natal e que se expirarem este prazo em um ou dois dias terão de pagar “...Portageens e custumageens como de nom vyzynhos [...]” exigidos pelos portageiros.(8)
Exemplos como estes demonstram as ilegalidades praticadas por vários oficiais régios e que levam mais tarde a reivindicações e reclamações por parte dos moradores das cidades e respectivos termos.
Outras situações existem que levam também a desavenças entre a população e os representantes régios. Ao contrário dos exemplos que anteriormente referimos, estes casos não estão contemplados no foral da cidade mas fazem parte do costume antigo, tais como “...he custume antigo da dicta Cidade que em no tempo do Relego ssejam // duas tauernas Abertas cada ffreegijssya da dicta Cidade [..]”, queixando-se os moradores que os rendeiros da adega do rei não deixam abrir essas tabernas “...saluosse lhys derem quanto elles quisserem e que aas vezes pedem tanto que Aquelles que os vynhos teem pera vender nom entendem hy ssa prol em lho dar [...]”.(9)
Apesar de inúmeras as queixas referentes ao abuso de poder por parte destes oficiais, outras havia que se relacionavam com infracções ao que fora estipulado ou mesmo com atitudes que os moradores consideravam injustas e muito pouco benéficas para o desenvolvimento da cidade. O caso em que o monarca ordena que o seu homem mantenha a casa que possui nos açougues do rei aberta para “...que os Almocreues que veem com vynho de ffora aa noyte ante daquella [...]”, não encontrem as portas fechadas e não se deitem na terra com o respectivo vinho, é um dos exemplos mais concretos daquilo que os moradores achavam injusto e “...que per esto Reçebe o Conçelho e sseus donos grande dano”.(10) Porém, outras atitudes eram consideradas injustas e mostravam inclusive alguma preocupação com o desenvolvimento económico e até demográfico da malha citadina. Por estas razões se queixam ao rei pelo facto dos portageiros cobrarem portagens e costumagens aos mesteirais de outras terras que pretendem instalar-se na cidade e desenvolver o seu ofício, em vez de serem considerados vizinhos e pagarem apenas o soldo. As consequências deste acto por parte dos portageiros leva a que esses mesteirais abandonem a terra “...e despobra sse A Çidade”.(11)
As reclamações e reivindicações são anotadas pelo monarca que na maioria das vezes ordena que sejam averiguadas tais ocorrências, que o informem mais detalhadamente das infracções que foram cometidas e há quanto tempo isso se mantém. Doutras vezes, quando a infracção é sobremaneira evidente e contrária ao foral do concelho, o rei impede que se continue a cometer os mesmos abusos. Finalmente, quando determinadas prerrogativas foram emitidas por outros monarcas anteriores ao seu reinado (como é o caso de seu pai D. Afonso IV ou de seu avô D. Dinis), o rei determina que se mantenha o estipulado pelos seus precedentes. Para os mais teimosos e que reincidam, o monarca manda executar a acção dos seus oficiais de justiça.
Para além de figuras como os almoxarifes, vedores e escrivães, portageiros e mordomos que são muitas vezes acusados de abusos fiscais em seu proveito, outras figuras surgem mencionadas neste texto e que nos transmitem algumas ideias sobre a organização da cidade medieval portuguesa e das regras a que cada concelho estava sujeito. É o caso do alcaide-mor responsável pelo castelo da cidade, “ligado também à autoridade régia [...] onde se acolhia a guarnição responsável pela defesa do núcleo urbano em caso de ataques vindos do exterior”. (12) De acordo com o texto, não era permitido ao alcaide-mor colocar alcaides-menores no castelo “…sse nom que sseia natural da dicta Çidade e AReigado em ella”.(13)
Análise documental - 2º documento
Se no documento anterior as reivindicações e reclamações se debruçavam mais sobre o aspecto económico, nomeadamente dos abusos fiscais cometidos por alguns funcionários régios, neste segundo documento o assunto relaciona-se exclusivamente com um tema de grande importância na constituição político-administrativa do reino: a justiça exercida no concelho da cidade de Coimbra e seu termo.
Para o Portugal medievo não existia melhor rei do que aquele que conserva o seu reino em paz, conseguindo este feito através da manutenção da justiça. Esta filosofia dá azo ao que encontramos nas Ordenações Afonsinas quando se diz que “...o Rey justo justifica realmente o seu nome, e conserva longamente seu Real estado e senhorio, e por esso he chamado Rey, pera que aja de reger justamente seu Regno, e manteer seu povoo em direito, e justiça...”(14) Na verdade, um bom exemplo disso é D. Pedro I, considerado um rei justo e defensor do seu povo, recebendo aliás o cognome de “o Justiceiro”.
Desta forma, o monarca deverá surgir como justiceiro, protector, legislador e juiz do seu reino, cabendo-lhe a ele a instância máxima de administração de justiça, o julgamento, a produção de sentenças e o garante de que estas são produzidas por todo o reino, através dos seus oficiais.(15)
Ora, este documento que agora analisamos trata-se precisamente de um escrito enviado pelos moradores do concelho de Coimbra ao rei, em que se queixam de algumas deficiências na justiça da sua cidade e na dificuldade que alguns oficiais de justiça têm em exercer a sua função neste concelho.
Exemplo indiciador desta situação é o facto dos conservadores e juiz do estudo não exercerem qualquer tipo de coerção sobre “...alguus escollares do Estudo desa Çidade...”(16), que criam algumas desavenças prejudiciais aos moradores do núcleo urbano. Ao que parece, esses oficiais de justiça têm algum receio em agir contra esses malfeitores, pois alguns membros desse estudo são muito poderosos e poderão revoltar-se. O monarca, como é lógico, ordena que através dos juízes e conservadores se faça justiça aos desordeiros.
Através do segundo artigo deste documento ficamos também a saber da obrigação que os mais abastados da cidade têm em contribuir para a construção ou reconstrução de fontes, pontos ou muros no espaço citadino. No entanto, o não cumprimento desta prerrogativa conduz a uma queixa directa ao rei, denunciando inclusive alguns ricos homens, cavaleiros, membros de ordens, igrejas e clérigos (que possuíam bens de raiz) de se negarem a pagar tais empreendimentos. A mando de D. Pedro I, os alvazis da cidade ficam encarregues de os fazerem cumprir tal preceito, de acordo com aquilo que cada um possuía.
Algumas destes escritos dirigidos ao monarca assumiam-se muitas vezes como privilégios. Tal é o caso do terceiro artigo que revela o descontentamento dos moradores e vizinhos pelo facto do rei impor almotaçaria sobre o pão, o vinho e a cevada aquando da sua chegada à cidade, agravando-os no lucro que poderiam obter para colmatar as grandes despesas da lavoura. Para além disso, existem outras cidades e vilas aforadas que não possuem o agravo da almotaçaria sobre tais produtos, o que seria motivo suficiente para que o rei os desagravasse. O monarca mostra clemência por tal situação e manda que seja respeitado o foral do concelho e que os almotacés cumpram tal princípio, sob pena de serem substituídos pelo próprio rei.
Uma situação caricata é o facto relatado no quinto artigo deste escrito, revelando que na eventualidade de determinado infractor fugir da cidade e do seu termo para outro local, os juízes da cidade prejudicada não teriam qualquer autoridade em aplicar a pena. É precisamente esta situação que querem alterar, pedindo ao monarca que se faça justiça sobre esses malfeitores onde quer que sejam achados.
Facto relevante da sociedade medieval portuguesa é também a importância adquirida pelo cavalo nesta época, como meio indispensável de prestação de serviços à coroa. Isso mesmo poderá ser verificado pela exigência que fazem os “...corregedores e Aconteadores de Caualo quando chegam a dicta Çidade...”(17) Aos moradores é-lhes exigido que possuam bons cavalos de acordo com a qualidade da terra, obrigando-os variadas vezes a comprarem mais cavalos mesmo que apenas um já valha o preço da propriedade. Ao monarca coube-lhe mais uma vez comprazer com os moradores da dita cidade.
Finalmente, um outro pedido ao rei surge no fim deste documento, relacionado com algumas sentenças determinadas directamente pelos “...aluazijs dos oveençaães...” e que seguidamente são contrariadas pelos oficiais régios, fazendo estes seguir uma carta para a Corte do rei expondo tal situação. Tal situação parece que agrava os direitos destes requerentes, solicitando ao monarca que tais decisões ficassem pelos alvazis, não seguindo deste modo para a Corte. Neste campo está explícita a hierarquia estabelecida no meio urbano, evidenciando-se também na matéria relacionada com a justiça.
À semelhança do primeiro documento, também este foi redigido em Elvas , desta feita aos 30 dias do mês de Maio do ano de 1399 (1361 da Era de Cristo) por Afomso mjgueez, a mando del Rey D. Pedro I e tendo como emissário o seu vassalo Lourenço steuez. No que concerne aos destinatários de tais premissas destacam-se claramente o concelho da cidade de Coimbra e moradores dela e do seu termo.
Para o Portugal medievo não existia melhor rei do que aquele que conserva o seu reino em paz, conseguindo este feito através da manutenção da justiça. Esta filosofia dá azo ao que encontramos nas Ordenações Afonsinas quando se diz que “...o Rey justo justifica realmente o seu nome, e conserva longamente seu Real estado e senhorio, e por esso he chamado Rey, pera que aja de reger justamente seu Regno, e manteer seu povoo em direito, e justiça...”(14) Na verdade, um bom exemplo disso é D. Pedro I, considerado um rei justo e defensor do seu povo, recebendo aliás o cognome de “o Justiceiro”.
Desta forma, o monarca deverá surgir como justiceiro, protector, legislador e juiz do seu reino, cabendo-lhe a ele a instância máxima de administração de justiça, o julgamento, a produção de sentenças e o garante de que estas são produzidas por todo o reino, através dos seus oficiais.(15)
Ora, este documento que agora analisamos trata-se precisamente de um escrito enviado pelos moradores do concelho de Coimbra ao rei, em que se queixam de algumas deficiências na justiça da sua cidade e na dificuldade que alguns oficiais de justiça têm em exercer a sua função neste concelho.
Exemplo indiciador desta situação é o facto dos conservadores e juiz do estudo não exercerem qualquer tipo de coerção sobre “...alguus escollares do Estudo desa Çidade...”(16), que criam algumas desavenças prejudiciais aos moradores do núcleo urbano. Ao que parece, esses oficiais de justiça têm algum receio em agir contra esses malfeitores, pois alguns membros desse estudo são muito poderosos e poderão revoltar-se. O monarca, como é lógico, ordena que através dos juízes e conservadores se faça justiça aos desordeiros.
Através do segundo artigo deste documento ficamos também a saber da obrigação que os mais abastados da cidade têm em contribuir para a construção ou reconstrução de fontes, pontos ou muros no espaço citadino. No entanto, o não cumprimento desta prerrogativa conduz a uma queixa directa ao rei, denunciando inclusive alguns ricos homens, cavaleiros, membros de ordens, igrejas e clérigos (que possuíam bens de raiz) de se negarem a pagar tais empreendimentos. A mando de D. Pedro I, os alvazis da cidade ficam encarregues de os fazerem cumprir tal preceito, de acordo com aquilo que cada um possuía.
Algumas destes escritos dirigidos ao monarca assumiam-se muitas vezes como privilégios. Tal é o caso do terceiro artigo que revela o descontentamento dos moradores e vizinhos pelo facto do rei impor almotaçaria sobre o pão, o vinho e a cevada aquando da sua chegada à cidade, agravando-os no lucro que poderiam obter para colmatar as grandes despesas da lavoura. Para além disso, existem outras cidades e vilas aforadas que não possuem o agravo da almotaçaria sobre tais produtos, o que seria motivo suficiente para que o rei os desagravasse. O monarca mostra clemência por tal situação e manda que seja respeitado o foral do concelho e que os almotacés cumpram tal princípio, sob pena de serem substituídos pelo próprio rei.
Uma situação caricata é o facto relatado no quinto artigo deste escrito, revelando que na eventualidade de determinado infractor fugir da cidade e do seu termo para outro local, os juízes da cidade prejudicada não teriam qualquer autoridade em aplicar a pena. É precisamente esta situação que querem alterar, pedindo ao monarca que se faça justiça sobre esses malfeitores onde quer que sejam achados.
Facto relevante da sociedade medieval portuguesa é também a importância adquirida pelo cavalo nesta época, como meio indispensável de prestação de serviços à coroa. Isso mesmo poderá ser verificado pela exigência que fazem os “...corregedores e Aconteadores de Caualo quando chegam a dicta Çidade...”(17) Aos moradores é-lhes exigido que possuam bons cavalos de acordo com a qualidade da terra, obrigando-os variadas vezes a comprarem mais cavalos mesmo que apenas um já valha o preço da propriedade. Ao monarca coube-lhe mais uma vez comprazer com os moradores da dita cidade.
Finalmente, um outro pedido ao rei surge no fim deste documento, relacionado com algumas sentenças determinadas directamente pelos “...aluazijs dos oveençaães...” e que seguidamente são contrariadas pelos oficiais régios, fazendo estes seguir uma carta para a Corte do rei expondo tal situação. Tal situação parece que agrava os direitos destes requerentes, solicitando ao monarca que tais decisões ficassem pelos alvazis, não seguindo deste modo para a Corte. Neste campo está explícita a hierarquia estabelecida no meio urbano, evidenciando-se também na matéria relacionada com a justiça.
À semelhança do primeiro documento, também este foi redigido em Elvas , desta feita aos 30 dias do mês de Maio do ano de 1399 (1361 da Era de Cristo) por Afomso mjgueez, a mando del Rey D. Pedro I e tendo como emissário o seu vassalo Lourenço steuez. No que concerne aos destinatários de tais premissas destacam-se claramente o concelho da cidade de Coimbra e moradores dela e do seu termo.
CONCLUSÃO
Chegando ao final esta análise documental dos capítulos especiais apresentados nas Cortes de Coimbra de 1361, pouco mais nos resta dizer para finalizar este trabalho.
Facilmente se conclui que, apesar de nem sempre nos retratarem a realidade do reino em determinada época, as Cortes apresentam-se como uma instituição de carácter meramente político, fundamental para o controlo administrativo do reino nas suas várias vertentes. Através delas, o rei desempenha o seu papel de governante justo, demonstrando preocupação pelos problemas que afectam as gentes do seu reino e, simultaneamente tentando resolvê-los de uma forma coerente.
Por outro lado, como fonte de estudo directa, permite ao historiador retirar delas uma vasta informação sobre a época que retrata, não só no que concerne aos aspectos políticos, mas também os aspectos sócio-culturais. Apresenta-se assim como um meio de estudo indispensável à construção da história, mesmo que os silêncios que muitas vezes apresenta sejam alvo de crítica por parte de muitos estudiosos.
No entanto, essa é a função do historiador, trabalhar o mais arduamente possível para construir a história, reunindo passo a passo todas as peças que conseguiu adquirir, e posteriormente fazer encaixá-las até que surja a verdadeira imagem do passado...
(1) Morador e contribuinte do concelho, detentor da plenitude dos direitos e deveres foraleiros.
(2)Cf. Artº 17º , [fl. 3v.º], dos “Capítulos Especiais de Cortes apresentados pela cidade de Coimbra”, in Cortes Portuguesas. Reinado de D. Pedro I (1357-1367), Lisboa, CEH/INIC, 1986, pág. 85.
(3)Cf. Artº 16º, Obr. cit., pág. 84.
(4) Cf. Artº 17º, [fl. 3v.º], Obr. cit., pág. 85.
(5) Cf. Artº 23º, Obr. cit., pág. 87.
(6) Cf. Artº 4º, Obr. cit., pág. 80.
(7) Moeda de prata (20 soldos correspondiam, em geral, a 1 morabitino).
(8) Cf. Artº 9º, Obr. cit., pág. 82.
(9) Cf. Artº 17º, [fl. 3v.º], Obr. cit., pág. 85.
(10) Cf. Artº 6º, Obr. cit., pág. 81
(11) Cf. Artº 10º, Obr. cit., pág. 82.
(12) ANDRADE, Amélia Aguiar, Horizontes Urbanos Medievais, Lisboa, Livros Horizonte, 2004, pág. 78.
(13) Cf. Artº 26º [fl. 4v.º], Obr. cit., pág. 88.
(14) Livro 5º, Tít. I, “Dos Ereges”, pág. 2.
(15) DUARTE, Luís Miguel, Justiça e Criminalidade no Portugal Medievo (1459-1481), Lisboa, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Ministério da Ciência e da Tecnologia, Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 89.
(16) Cf. Artº 1º (2º Documento), Obr. cit., pág. 92.
(17) Cf. Artº 4º (2º Documento), Obr. cit., pág. 94..
(2)Cf. Artº 17º , [fl. 3v.º], dos “Capítulos Especiais de Cortes apresentados pela cidade de Coimbra”, in Cortes Portuguesas. Reinado de D. Pedro I (1357-1367), Lisboa, CEH/INIC, 1986, pág. 85.
(3)Cf. Artº 16º, Obr. cit., pág. 84.
(4) Cf. Artº 17º, [fl. 3v.º], Obr. cit., pág. 85.
(5) Cf. Artº 23º, Obr. cit., pág. 87.
(6) Cf. Artº 4º, Obr. cit., pág. 80.
(7) Moeda de prata (20 soldos correspondiam, em geral, a 1 morabitino).
(8) Cf. Artº 9º, Obr. cit., pág. 82.
(9) Cf. Artº 17º, [fl. 3v.º], Obr. cit., pág. 85.
(10) Cf. Artº 6º, Obr. cit., pág. 81
(11) Cf. Artº 10º, Obr. cit., pág. 82.
(12) ANDRADE, Amélia Aguiar, Horizontes Urbanos Medievais, Lisboa, Livros Horizonte, 2004, pág. 78.
(13) Cf. Artº 26º [fl. 4v.º], Obr. cit., pág. 88.
(14) Livro 5º, Tít. I, “Dos Ereges”, pág. 2.
(15) DUARTE, Luís Miguel, Justiça e Criminalidade no Portugal Medievo (1459-1481), Lisboa, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Ministério da Ciência e da Tecnologia, Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 89.
(16) Cf. Artº 1º (2º Documento), Obr. cit., pág. 92.
(17) Cf. Artº 4º (2º Documento), Obr. cit., pág. 94..
Bibliografia
Fontes Impressas:
Capítulos Especiais de Cortes apresentados pela cidade de Coimbra”, in Cortes Portuguesas. Reinado de D. Pedro I (1357-1367), Lisboa, CEH/INIC, 1986, pp. 79-95.
Obras Auxiliares:
ANDRADE, Amélia Aguiar, Horizontes Urbanos Medievais, Lisboa, Livros Horizontes, 2004.
DUARTE, Luís Miguel, Justiça e Criminalidade no Portugal Medievo (1459-1481), Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.
MARQUES, A. H. de Oliveira, Históriade Portugal (Das Origens ao Renascimento), Vol. I, Lisboa, Editorial Presença, 1997, pp. 143-171.
SOUSA, Armindo de, As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490), Vol. I/II, Porto, Instituto Nacional de Investigação Científica - Centro de História da Universidade do Porto, 1990.
Fontes Impressas:
Capítulos Especiais de Cortes apresentados pela cidade de Coimbra”, in Cortes Portuguesas. Reinado de D. Pedro I (1357-1367), Lisboa, CEH/INIC, 1986, pp. 79-95.
Obras Auxiliares:
ANDRADE, Amélia Aguiar, Horizontes Urbanos Medievais, Lisboa, Livros Horizontes, 2004.
DUARTE, Luís Miguel, Justiça e Criminalidade no Portugal Medievo (1459-1481), Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.
MARQUES, A. H. de Oliveira, Históriade Portugal (Das Origens ao Renascimento), Vol. I, Lisboa, Editorial Presença, 1997, pp. 143-171.
SOUSA, Armindo de, As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490), Vol. I/II, Porto, Instituto Nacional de Investigação Científica - Centro de História da Universidade do Porto, 1990.