D. João Peculiar (1100? - Braga, 3.12 de 1175)
“A grande autoridade que alcançou,
punha-a sempre ao serviço da sua pátria
e do seu príncipe”.
(Carl Erdmann)
João Silva de Sousa (1)
1. Primeiros Passos
Prelado do século XII, natural, muito provavelmente, da região de Coimbra, onde lhe conhecemos a existência de irmãos em 1152, ou talvez de Lafões, filho de Cristóvão João e de D. Maria Rabaldis, senhora da vila de Murtede, irmão de Cristóvão João e de Justa, D. João Peculiar passou a juventude em França, onde estudou na Universidade de Paris e onde deve ter permanecido até 1126.
A sua presença na corte de D. Afonso Henriques [1109-1185] é demonstrativa de que começara a exercer o papel de homem do seu conselho, de 1131 em diante, por tudo quanto sabemos das funções que desempenhou. Mas as responsabilidades episcopais e políticas não o faziam esquecer a sua antiga vinculação aos eremitas, a todos os religiosos que, devotos a Deus, à Igreja e ao Santo Padre, enxameavam pelo território portucalense, muitos deles em péssimas condições de subsistência, em lugares do Interior e demasiado isolados, solicitando ao Infante uma maior atenção sobre os mesmos.
Na verdade, um dos aspectos da nova organização religiosa manifesta-se na reordenação dos espaços – a geografia humana e a monumental religiosa: a construção dos seus templos, o cultivo das granjas, a manufactura de objectos. Ainda a Escola, o Scriptorium, a Livraria... os alunos que eram ensinados por padres para virem a ser padres.
A divisão eclesiástica e a sua respectiva e inerente regulamentação (a existência de Estatutos próprios desde 1139) tiveram sempre uma enorme influência, sobretudo durante a “Reconquista”, em que constituíam os únicos quadros que davam vida à antiga ordem romano-gótica. Consequentemente, para a independência portuguesa foi importantíssimo que as sés do novo “Reino” obedecessem a um metropolita ou primaz ligado ao soberano português. Daí a luta que se travou durante os governos de D. Henrique (m. Astorga, 1112) e de seu filho para que as dioceses do Porto e Coimbra, como as de Lamego e Viseu, fossem sufragâneas de Braga, sendo que a primazia desta era um elemento fundamental na formação do novo “Estado”.
Em Portugal, D. João Peculiar foi autorizado a mandar edificar um oratório na vila de Lafões (1126), onde se recolheu com alguns sacerdotes, na prática de exercícios religiosos, e, logo a seguir, fora experimentar os ares de São João de Tarouca, de início, um eremitério, tendo a primeira pedra sido lançada em 1152, após a vitória de Trancoso, e cujas origens os antigos cronistas envolveram em lendas, contradições e anacronismos.
Prelado do século XII, natural, muito provavelmente, da região de Coimbra, onde lhe conhecemos a existência de irmãos em 1152, ou talvez de Lafões, filho de Cristóvão João e de D. Maria Rabaldis, senhora da vila de Murtede, irmão de Cristóvão João e de Justa, D. João Peculiar passou a juventude em França, onde estudou na Universidade de Paris e onde deve ter permanecido até 1126.
A sua presença na corte de D. Afonso Henriques [1109-1185] é demonstrativa de que começara a exercer o papel de homem do seu conselho, de 1131 em diante, por tudo quanto sabemos das funções que desempenhou. Mas as responsabilidades episcopais e políticas não o faziam esquecer a sua antiga vinculação aos eremitas, a todos os religiosos que, devotos a Deus, à Igreja e ao Santo Padre, enxameavam pelo território portucalense, muitos deles em péssimas condições de subsistência, em lugares do Interior e demasiado isolados, solicitando ao Infante uma maior atenção sobre os mesmos.
Na verdade, um dos aspectos da nova organização religiosa manifesta-se na reordenação dos espaços – a geografia humana e a monumental religiosa: a construção dos seus templos, o cultivo das granjas, a manufactura de objectos. Ainda a Escola, o Scriptorium, a Livraria... os alunos que eram ensinados por padres para virem a ser padres.
A divisão eclesiástica e a sua respectiva e inerente regulamentação (a existência de Estatutos próprios desde 1139) tiveram sempre uma enorme influência, sobretudo durante a “Reconquista”, em que constituíam os únicos quadros que davam vida à antiga ordem romano-gótica. Consequentemente, para a independência portuguesa foi importantíssimo que as sés do novo “Reino” obedecessem a um metropolita ou primaz ligado ao soberano português. Daí a luta que se travou durante os governos de D. Henrique (m. Astorga, 1112) e de seu filho para que as dioceses do Porto e Coimbra, como as de Lamego e Viseu, fossem sufragâneas de Braga, sendo que a primazia desta era um elemento fundamental na formação do novo “Estado”.
Em Portugal, D. João Peculiar foi autorizado a mandar edificar um oratório na vila de Lafões (1126), onde se recolheu com alguns sacerdotes, na prática de exercícios religiosos, e, logo a seguir, fora experimentar os ares de São João de Tarouca, de início, um eremitério, tendo a primeira pedra sido lançada em 1152, após a vitória de Trancoso, e cujas origens os antigos cronistas envolveram em lendas, contradições e anacronismos.
(Localização das termas de S. Pedro do Sul e do Mosteiro de S. Cristóvão de Lafões)
Os seus professos, fosse qual fosse a regra a que aderissem, habitaram primeiro o mosteiro de S. João Baptista das Aveleiras (freguesia de Queiriz – séc. XII -, actual concelho de Fornos de Algodres), onde se encontravam quando D. Afonso Henriques lhes fez uma doação, dois anos após a batalha de S. Mamede (1130).
Voltemos a recordar São Cristóvão de Lafões, situado na sua diocese, pois foi, decerto, por sugestão dos pais, que ele próprio – D. João Peculiar – solicitou a D. Afonso Henriques a concessão de uma carta de couto em seu favor, em Outubro de 1137. Pouco tempo depois, intervinha já na vida interna da mesma comunidade, escolhendo o sucessor do seu antigo abade, D. João Cirita [? -1164], e fazendo-lhe a doação de um outro eremitério. O Convento foi erigido num morro sobre a ribeira da Landeira, perto da Serra da Gralheira, no actual concelho de São Pedro do Sul, cujo povoamento é anterior ao século XII (Ver localização, fig. seg.).
A fundação deste convento deveu-se aos frades da regra dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, que aderiram, logo em seguida, à Ordem de São Bernardo, S. Bento [Beneditinos], juntando os eremitas pelas encostas do Vouga, onde viviam naturalmente isolados.
Voltemos a recordar São Cristóvão de Lafões, situado na sua diocese, pois foi, decerto, por sugestão dos pais, que ele próprio – D. João Peculiar – solicitou a D. Afonso Henriques a concessão de uma carta de couto em seu favor, em Outubro de 1137. Pouco tempo depois, intervinha já na vida interna da mesma comunidade, escolhendo o sucessor do seu antigo abade, D. João Cirita [? -1164], e fazendo-lhe a doação de um outro eremitério. O Convento foi erigido num morro sobre a ribeira da Landeira, perto da Serra da Gralheira, no actual concelho de São Pedro do Sul, cujo povoamento é anterior ao século XII (Ver localização, fig. seg.).
A fundação deste convento deveu-se aos frades da regra dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, que aderiram, logo em seguida, à Ordem de São Bernardo, S. Bento [Beneditinos], juntando os eremitas pelas encostas do Vouga, onde viviam naturalmente isolados.
Alguns historiadores são da opinião de que o verdadeiro fundador do mosteiro foi João Peculiar e não João Cirita, mas que, em virtude de João Peculiar ter sido chamado a desempenhar outras funções importantes, ficou o mosteiro, logo no início, sob as ordens de Cirita, e daí o nome deste estar abusivamente associado à sua fundação.
Em 1163, o convento adere à ordem dos monges cistercienses, como aconteceu a quase todos os mosteiros beneditinos.
Em 1140, de Aveleiras para S. João de Tarouca haviam passado já para uma melhor situação: um edifício mais amplo – embora ainda um eremitério -, que, naquela freguesia de Tarouca, vieram a receber, nesse ano, ampliado, muito posteriormente, por meio de uma bula, através da qual Alexandre III os tomava e ao mosteiro sob sua protecção, isentando-os da solvência da dízima dos produtos das terras que eles, por si mesmos, cultivassem e dos gados que criassem. Ficavam dispensados do pagamento de entradas e saídas (as costumagens), em caso de transumância. Excepto da colheita régia e da visitação do Arcebispo e do Bispo, ficavam isentos do cumprimento de direitos reais. Não podiam cunhar moeda. Estas imunidades foram extensivas a S. Salvador de Grijó, actual concelho de Vila Nova de Gaia e freguesia de Grijó, e a Refoios do Lima.
Ao nível da vida religiosa, a grande novidade em Portugal no século XII foi o acolhimento dos Cistercienses por 1130. S. Cristóvão de Lafões teve, quanto a nós, um papel pioneiro – um projecto marcado por aquele que viria a ser arcebispo de Braga, João Peculiar – o de ter desenvolvido a irradiação cisterciense em Portugal, pese embora o que se tem afirmado comummente em relação a S. João de Tarouca. Desta feita, o modelo ético, comportamental, de estudos religiosos (naturalmente) e legislativo seguido pelos Cistercienses era proveniente de um modelo internacional implementado também em Portugal, embora o Capítulo Geral de uma canónica regrante assumisse, obviamente e por imperativo geográfico e de acomodação, um rumo próprio. Mas a base seria sempre a mesma.
Não será de pôr de parte ainda a figura de Peculiar, um dos seus fundadores, como é sabido, na relevante influência que pode ter tido, no importante papel da canónica crúzia.
No regresso de França, por 1126, fundou ou reorganizou o referido Mosteiro em Lafões que, mais tarde, confiou ao referido abade. Pelo seu desiderato e doutrina, “statuit monasterium apud Sanctum Christoforum”, de princípios regulares um tanto confusos, mas que evoluirão para as normas de São Bento, vindo, depois, a filiar-se na Ordem de Cister. Tensões houve-as sempre, embora em Portugal, de cada vez maior amplitude geográfica não impediam a Santa Sé de conservar as garantias e imunidades que fossem outorgadas a mosteiros isentos mas que eram – eles mesmos – fidelizados ao reforço do poder dos Papas, junto da autoridade diocesana
Pelo que ficou dito, acrescente-se que, à medida que íamos avançando pelo século XII, mais esta circunstância se impunha, a fim de estabelecer o Poder da Santa Sé acima da soberania imposta por Frederico I, Barba Ruiva, imperador do Sacro-Império romano-germânico. Mas a espiritualidade de Roma aumentava a secância e alargava os seus poderes comparativamente aos do Imperador de uma pretensa União Europeia na época que não podia fazer outra coisa que não fosse aceitar o aumento da manus papal. Esta circunstância de os soberanos adoptarem, de preferência, a supremacia espiritual sobre a temporal prova-se pelo princípio que tão regularmente fora invocado junto dos delegados imperiais: “No meu Reino quem é o imperador é o Rei”, sabendo nós, no entanto, que, igualmente a fim de fixar o seu poder, o rei de Portugal impunha limitações à Igreja e, por outro lado, precisando do seu auxílio e saber, ia distraindo do fisco avultados e numerosos meios para ter a clerezia nas mãos. Por outro lado, o termo Imperador tinha um significado um tanto alargado (e dúbio). O imperium era exercido pelo imperator, sendo que o primeiro significava soberania ou poder soberano (auctoritas una, indivisível, inalienável e imprescritível) e o segundo o que imperava, o rex no seu regnum, o governador ou imperador.
O grande auxiliar de sempre de D. Afonso Henriques, fora um religioso. Além de D. Teotónio [1080-1162] e, mesmo provavelmente, suplantando este, foi D. João Peculiar. O papel de conselheiro do Príncipe, residente no Paço, auferindo de moradia pela sua permanente acção na Cúria, para a resolução de problemas concretos e para a orientação da política régia, pelo menos em questões de maior importância, pertenceu-lhe até morrer.
O infante encontrou-se com ele, pela primeira vez, muito provavelmente, em 1131, quando preparava, com Teotónio, a fundação do Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra, cidade, em cuja catedral foi mestre-escola, sendo aí arcediago D. Telo [1076-1136], o qual acompanhou D. João Peculiar a Roma, a fim de impetrar de Inocêncio II [1130-1143] que o Instituto dos Cónegos Regulares de Santo Agostinho fosse restituído à sua primeira observância. Tornaram-no tributário da Santa Sé, obtendo de Inocêncio II a bula Desiderium quod, a 24 de Maio de 1135, a conceder-lhe a protecção papal e a isenção episcopal.Conseguiram a sua pretensão com muitos privilégios e indultos para o Convento de Santa Cruz de Coimbra, e regressaram a Portugal em Junho de 1135, onde o futuro rei residia. Deve, desde logo, ter apreciado a firmeza das convicções de D. João, o entusiasmo com que se empenhava numa fundação religiosa sem precedentes em Portugal, e a cultura que havia adquirido durante a sua estadia no seio dos intelectuais francos e agora já diplomado pela Universidade de Paris, antes de passar a mestre-escola daSé de Coimbra (c. de 1133). Sabe-se que foi, em 1138, transferido para Braga, sucedendo a D. Paio Mendes [1118-1137]. O prelado fundou um hospital para pobres, dotando-o com herdades e quintãs, e outros bens imóveis, entregando o hospital à administração dos Templários.
As bulas, como se sabe, traduzem a própria evolução interna da Santa Sé e da vontade do Papa e dos seus diáconos mais directos, as suas noções de primazia e de imperium (jurisdição) pontifícios, no agitado decurso de todo o século XII.
A fundação do referido mosteiro – como o refere Avelino de Jesus da Costa – ficou a dever-se à conjugação dos esforços de três ilustres personagens: D. Telo, arcediago da Sé de Coimbra, D. João Peculiar, mestre-escola da Sé de Coimbra e a D. Afonso Henriques.
Os vizinhos e moradores de Braga e das imediações, logo após a morte do fundador, usurparam bens do hospital. D. João Peculiar, assim que tomou posse da Arquidiocese de Braga, com o seu cabido, confirmou a doação do seu predecessor e, a pedido do príncipe D. Afonso Henriques, ordenou que fosse restituído ao hospital tudo quanto lhe havia sido usurpado. Trabalhou, incansavelmente, pelo engrandecimento e independência da diocese de poderes estranhos, e reorganizou o Cabido.
Nos representantes mais importantes da administração das novas catedrais, estabeleceram-se funções várias. De ordinário, eram os cónegos quem as desempenhavam. Presidido pelo deão, em rigor o mais antigo, o decanus, tinha na sua organização a administração interna e a justiça entregues ao archidiaconus. A fim de exercer uma superintendência nas paróquias rurais, havia os arciprestes, de archipresbiter. Os cónegos tinham a obrigação de orar e cantar em coro as horas do ofício divino, cuja direcção se achava a cargo do chantre (o cantor). A Catedral tinha a Escola Capitular para recrutamento e formação do clero, sob a direcção do cónego mestre-escola (magister scholarum). E as rendas da mesa capitular, ou seja, os rendimentos próprios do cabido, assim como a conservação do seu património, estavam confiadas ao tesoureiro.
É de ter em boa nota o que, então, D. João Peculiar ouvira dizer dos antipapas João XVI [997-998] e Gregório VI [1012/1058 ou 1059] que não conhecera, naturalmente, mas contemporâneos dos Papas romanos Gregório V [996-999] e Bento VII [974-983]. Estas lutas espirituais permitiram-lhe raros conhecimentos e sabedoria, raciocinar, optar e o poder de saber organizar, já para não falar daqueles com quem travara conhecimento directo, em Roma: de Calixto II a Alexandre III [1119-1175]
Podemos admitir, pois, pelo que ficou dito, que esta última faceta tivesse tido para D. Afonso Henriques um valor muito significativo. Na verdade, não obstante apenas ter conhecido o Cônsul, seu pai, de ouvir falar dele, dado que falecera tinha o Príncipe três anos, não podia esquecer a sua condição de filho de um estrangeiro, descendente de Roberto I, rei de França [865-923], trazendo consigo para a Hispânia ideias inovadoras, tendo-se empenhado na difusão de instituições religiosas e seculares do seu País de origem, e posto toda a sua força anímica ao serviço de uma grande ambição pessoal reformadora e de poder.
Digamos que eram já dois. Um tinha falecido, mas permanecia no pensamento do Aio e, apenas indirectamente, em D. João Peculiar. Também podemos imaginar que aquele lhe falasse, então, e com respeito e admiração, acerca do Conde D. Henrique [1066-1112] e do seu avô materno, Afonso VI, de Leão e Castela [1039-1109], e de quem este era filho: Fernando I, o Magno [1016-1065] ao qual havia ficado a dever-se a conquista definitiva de Tarouca, Lamego e Viseu até aos castelos da linha que conduzia a Seia, em 1147, e Coimbra, em 1164, aos quais devia grande parte da sua inesquecível glória no pacto de amizade que estabeleceram com os monges de Cluny. No plano cristão, Afonso VI, rei de Leão, fomentou a segurança do caminho de Santiago, impulsionou a introdução da reforma cluniacense em mosteiros do seu Reino e abriu as portas, por sugestão de sua mulher, D. Constança [1046-1093], à Ordem de Cister, na Hispânia, estabelecendo-a em Sahagún, escolhendo Bernard de Cluny, um cisterciense francês, como o primeiro arcebispo de Toledo, depois da “reconquista” desta, em 25 de Maio de 1085 [1086-1124], em que a pressão de Cluny foi imensamente forte, tornando-se irredutível no constante aconselhamento ao soberano. O Cônsul D. Henrique da Borgonha e tenente de Afonso VI em Portugale faz uma doação a Albert de Thibaud, a seus irmãos e a todos os franceses que não morassem na vila de Guimarães, no campo junto ao Paço do referido centro urbano. O facto levaria, mais tarde, D. Afonso Henriques, a julgar positivamente os Franceses e a sua utilidade no Condado, e a apreciar os critérios com que João Peculiar opinava sobre o que, então, se passava no Reino e no seio da Igreja, nas relações do temporal com o espiritual, e a sua intervenção activa, nas mais dinâmicas correntes religiosas da época.
Afonso deve também ter acompanhado com atenção o relato da viagem que João Peculiar fez a França e à Itália, em 1135, aquando do Concílio de Pisa, de cujas resoluções, ele, de regresso, lhe terá contado, sem dúvida, como decorrera a assembleia e quais as acções do papa Inocêncio II. Falou-lhe acerca de uma das conquistas da reforma gregoriana, que tinha sido a capacidade de o clero escolher as suas próprias autoridades, sem interferência dos reis e senhores feudais. Mas esta independência teórica traduzia-se, na prática, sobretudo desde 1123, pela eleição dos bispos em assembleias constituídas pelo clero da diocese (sobretudo os cónegos da catedral), embora na presença do rei e dos nobres. E falou-lhe, por certo, ainda numa hipótese que avançara já em Roma no sentido de ser reconhecida a independência a Portugal. Não era difícil explicar as circunstâncias: Afonso VII [1105-1157] acabara por herdar o trono da Galiza, em 1111, de Leão em 1126, de Toledo e Castela, em 1127 e começara a intitular-se, no ano do Concílio de Pisa, de Imperator Hispaniae, título que devia irritar seu primo, senhor do Condado Portucalense e que também nós não entendemos por quê. Afinal, onde estava o Império? Na união de Leão com Castela, num espaço territorial contínuo e de dimensões que em nada ajudavam a aceitá-lo? Nem os reis godos de tal se lembraram e os motivos que os autores aduziram eram, afinal, os mesmos.
No entanto, o título de Imperador significava, apesar de tudo, uma via que poderia mais facilmente fazer chegar a D. Afonso Henriques o de rei, título esse que enobrecia o nosso Príncipe e seu primo, com reis seus vassalos. E um rei sem Reino, era situação que o nosso Infante não aceitaria com facilidade. Também para D. João Peculiar que acompanhava de perto Afonso de Portugale, veria no título do Castelhano, uma maneira de fazer entender a Santa Sé com uma menor necessidade de argumentos para a obtenção do título de rei e da categoria de Reino a Afonso e ao território onde este “reinava”.
Não sendo diplomata de medos, quis, no entanto, atacar a questão, junto do Papa, para evitar acentuadas subalternidades do Príncipe de Portugal em relação a seu primo Afonso VII. Afinal eram netos e bisnetos de reis comuns e este era o mais válido dos argumentos, além do propósito de ambos residir na ‘reconquista’ territorial e na consequente luta ao infiel, cuja prioridade nunca seria esquecida, para vir a ser abandonada.
*
Tendo sido designado cónego e mestre-escola do cabido de Coimbra, em 1131, juntamente com o arcediago D. Telo [1076-1136], de quem era conselheiro, fundou o Mosteiro de Santa Cruz da mesma cidade, o qual adoptou a regra dos Cónegos de Santo Agostinho.
Os esforços seriam e foram sempre recíprocos: Afonso fazia o que João Peculiar aconselhava, e este contribuía vivamente para a satisfação do orgulho e mando do seu “rei”.
Ora, apoiados por D. Afonso Henriques, D. Telo e D. João Peculiar tinham-se deslocado a Pisa, em 1135 - como referimos acima -, onde se encontrava Inocêncio II, levando, na “pasta” para despacho, além dos desideratos acima enunciados, também o pedido de protecção por parte da Santa Sé do citado mosteiro conimbricense, como tributário dela, e ainda a confirmação dos seus bens e a isenção da autoridade episcopal, o que lhes foi concedido por bula de 25 de Maio daquele ano.
Outro efectivo e importante auxiliar de D. Afonso Henriques, como já demos a conhecer, fora D. Teotónio. Teólogo e filósofo, prior da catedral de Viseu, era um homem honesto. Para ele, a verdade, a justiça, a dignidade… seriam a sua grande, porque indiscutível, prioridade. Humílimo, por duas vezes, rejeitou o título de bispo, mantendo-se apenas como Prior do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, embora nomeado bispo desta cidade pelo Papa Anastácio IV em 1153, cargo que recusou.
A importante função de conselheiro do rei, no “aparelho de Estado”, para a resolução de problemas concretos e orientação da política régia, pelo menos em questões de maior importância, deve ter pertencido, sobretudo, a D. João Peculiar, logo desde 1131, quando preparava, com D. Teotónio, a fundação de Santa Cruz. O Infante e Príncipe herdeiro da terra e da soberania de seu pai, apreciou, por certo, desde logo, a firmeza das suas convicções, o entusiasmo com que se empenhava na criação de uma instituição religiosa sem precedentes em Portugal, e a cultura que havia adquirido durante a sua permanência no Reino dos Francos. Podemos admitir que esta última faceta tenha atraído Afonso de uma maneira especial. Mais uma vez, o nosso Infante deveria ter presente a origem da Família do seu pai e a ligação de sua mãe a Afonso VI, protector endividado dos Cluniacenses e a sua tia-avó, D. Constança, que atendeu ao estabelecimento em Castela de monges Beneditinos cistercienses. Deste modo, voltamos a sublinhar parte dos motivos que levaram Afonso Henriques a admirar o futuro Bispo e a aceitar os critérios com que este memorável religioso julgava o que então se passava no Reino e na Igreja, e a sua intervenção activa, nas mais dinâmicas correntes religiosas da época. Religiosas, civis e, inclusivamente, militares, como veremos adiante.
É de ter em atenção que o Paço Real se achava em Coimbra e que já, desde muito cedo, a cidade, naturalmente sede de bispado, fora sempre, com Viseu, aquela a quem seus pais deram uma primordial atenção. D. Teresa e o Conde, seu marido, doaram à Sé de Coimbra o Mosteiro de Lorvão, em 1109, pouco antes de Afonso ter nascido, mais uma série de terras que para necessitarem de ser povoadas e trabalhadas foram engrossar o património da Sé e de particulares, como tivemos já ocasião de referir num outro nosso trabalho. Curiosamente, Lafões veria, desta forma, mais fortemente ligada a sua relação com Santa Cruz de Coimbra – com a Sé e com Coimbra, de um modo geral, a sede do Reino. Dos 275 documentos que se traduzem em cartas de doação das terras visienses àquela cidade e institutos religiosos, 42% foram entregues ao Mosteiro, ad populandum e ad plantadum, e correspondiam a terras em torno de S. Pedro do Sul, Lafões, Vouzela, Penacova, Santa Comba Dão, Lorvão e Tondela, entre outras: o velho cordão umbilical que nunca fora cortado entre S. Cristóvão de Lafões e Santa Cruz de Coimbra; do Mosteiro de Lorvão e Santa Cruz de Coimbra; da Catedral Visiense e Santa Cruz. E, por ora, D. João Peculiar, incumbia-se do Mosteiro crúzio conimbricense. Razões mais que suficientes para bem disporem um rei, e fazê-lo ter a maior consideração por quantos se encarregavam, então, daquela importante fundação.
Por influência de D. Afonso Henriques, foi D. João Peculiar nomeado bispo do Porto em 1136, sendo transferido para Braga, como arcebispo, no Outono de 1138. D. João desempenhou por dois anos as funções de bispo.
Enquanto bispo do Porto teve um papel preponderante nas Pazes de Tui, em 4 de Julho de 1137, estabelecidas entre os primos Afonso VII de Leão e Castela e D. Afonso Henriques, através do qual se encerraram, durante algum tempo, os conflitos que recuavam à batalha de Cerneja. O rebelde Infante português terá invadido a Galiza e conquistado a praça de Tui, junto ao rio Minho, aproveitando as pretensões de Afonso VII em relação ao reino de Navarra, com o qual estava em hostilidade aberta. Afonso Henriques terá tomado Tui com o apoio do rei de Navarra, numa iniciativa militar "à traição", em que conquistou alguns castelos na região tudense. Afonso VII, todavia, rapidamente recuperou Tui. D. Afonso Henriques, que nunca reconheceu o título de imperador e respectivos direitos a seu primo – o que não tinha, na realidade, razão de ser -, terá também, com esta iniciativa, marcado posição relativamente a essa sua recusa de vassalagem, que se estenderia ao seu projecto político de formação de um reino independente a partir do condado Portucalense. O bispo D. João e o ainda arcebispo – ao tempo D. Paio Mendes -, acompanharam D. Afonso de Portugal, e a entrevista deu-se com seu primo, coadjuvado, para o efeito pelos bispos de Segóvia, Tui e Ourense. Foram os cinco religiosos que trabalharam em prol da respectiva concórdia, que tomou lugar em 1137, mas de fraca valoração para Portugal.
Foi depois – como dissemos - eleito arcebispo de Braga, cargo que o obrigou a desenvolver intensos contactos com os poderes políticos portugueses e leoneses e com a cúria romana. Caso de especial significado foi o deste prelado, o qual ainda que sem ter sido cónego professo, apenas familiar e honorário, veio a atingir aquelas funções a par de uma fortíssima ascendência política que sempre exerceu junto do nosso futuro Rei.
Na defesa dos direitos da metrópole bracarense teve de sustentar longa e corajosa luta com os arcebispos de Compostela e Toledo, pelo facto de o primeiro lhe querer usurpar as dioceses sufragâneas e o de Toledo pretender sujeitá-lo à sua obediência. Promoveu ele mesmo, por autoridade pessoal suportada por Afonso Henriques, a passagem de um elevado número de acistérios das suas Dioceses à Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho.
O facto de Peculiar residir em Braga não o impediu de frequentar a corte régia, e de aí continuar a insistir com o Príncipe na concretização dos seus objectivos, trazendo, assim, benesses às novas ordens religiosas, e colaborando com o rei na resolução dos problemas políticos a que teve de dar solução. Pela segunda vez, foi a Roma, para receber o pálio que Inocêncio II lhe entregou, e assistiu, por ordem do pontífice, ao segundo Concílio de Latrão que tomou lugar em 1139, tendo sido o primeiro prelado português a estar presente num concílio geral.
D. João Peculiar, por essa ocasião, contraiu uma estreita amizade com o Abade de Claraval, D. Bernardo, firmando-se, desde então, uma intensa correspondência epistolar entre os dois prelados. Cuidou da assistência dos que dela necessitavam nos eremitérios difundidos pelo “Reino” e no que se refere à cultura, abriu as portas dos mosteiros a quantos pretendiam estudar para padres.
Verificamos isto mesmo por exemplo, ao notar por si a confirmação de uma série de diplomas régios do ano de 1140, favorecendo outra comunidade eremítica, a de Vilarinho de Parada, concelho de Santo Tirso actual, de um mosteiro dúplice que passava a feminino, o de Rio Tinto, dos cistercienses de S. João de Tarouca, no concelho de Tarouca de hoje, do alargamento dos domínios da Sé Catedral de Coimbra e do mais importante mosteiro beneditino da arquidiocese de Braga, o de Tibães, em Mire, no actual concelho de Braga, sistemas copiados, por outros posteriores, como o de Alcobaça (1178).
Mais tarde, no Verão de 1143, acompanharia o cardeal Guido de Vico nas suas visitas a Coimbra e ao Porto, apoiando os acordos de D. Afonso Henriques com Afonso VII em Zamora (5 de Outubro de 1143) e a vassalagem ao papa nas mãos do mesmo cardeal. Nos anos seguintes, vemo-lo ainda – o que, aliás, fez até morrer - a desempenhar um papel central em todas as mais importantes decisões religiosas, políticas e iniciativas do rei. Foi o que aconteceu:
- Quando ele, em 1142, propôs a D. Afonso Henriques nomear como chanceler-mor Mestre Alberto, que o deve ter ajudado a gizar o cargo de rei, como fonte de autoridade e de legitimidade, cumpridor da justiça: rex eris si recte faceris, para que qualis rex, talis grex, pois quae recte fiunt, nunquam benefacta peribunto. Estas e outras máximas já antigas e pelo Príncipe esquecidas teriam de voltar a ser lembradas. Só um Escrivão da Puridade se atreveria a chamar a atenção do seu Rei e foi o que ambos fizeram João e Alberto, tal a ascendência que tinham sobre ele;
- Quando dirigiu ao papa Lúcio II a carta Claves regni coelorum, em Dezembro de 1143, como resultado da assembleia de Zamora;
- Quando empreendeu uma nova viagem a Roma para persuadir o Sumo Pontífice a reconhecer o título de rei já usado por Afonso Henriques, na Primavera de 1144;
- Quando, em nome do rei, pediu aos condes de Maurienne, Amadeu III e Matilde d’Albon, a mão de sua filha Mafalda, com quem o soberano veio a casar em 1146;
- Quando, anos depois, interveio no pedido de casamento de D. Mafalda, filha de D. Afonso Henriques, com o conde Raimundo de Barcelona, acompanhado que foi a Tui com a rainha sua mulher e suas filhas e recebendo-o, na presença de D. João Peculiar, arcebispo de Braga, D. Mendo, bispo de Lamego, D. Isidro, bispo de Tui, D. Pedro, conde das Astúrias, o conde D. Ramiro e D. Vasco, mais D. Gonçalo de Sousa, D. Pedro Pais, seu alferes-mor e outros muitos ricos-homens, cavaleiros e comitiva;
- Quando contactou o monge cisterciense Bernardo de Fontaine, abade de Claraval, para ele encarregar os cruzados flamengos da colaboração no cerco de Lisboa;
- Quando participou, pessoalmente, com o rei na conquista de Lisboa;
- Quando, de acordo com o rei, nomeou e sagrou os bispos de Viseu – D. Odório [1147-1166] -, de Lamego – D. Mendo [1147-1173] - e de Lisboa – Gilberto de Hastings [1147-1166], como pode ver-se em 1147, tendo seguido D. Afonso Henriques na tomada de Lisboa, e aí sagrado o citado bispo lisbonense, D. Gilberto – foi ele quem dividiu as rendas da catedral, que, então, eram comuns ao arcebispado e ao Cabido. Incumbiu desta operação os seus dois arcediagos - Mendo Ramires e Pedro Osório - que fizeram a divisão em três partes, servindo de modelo a Braga: duas para a mesa do arquiepiscopado e uma para a mesa capitular;
- Quando tomou parte nas cúrias de 1150 e de 1155, em Leão e Toledo, para discutir o envolvimento português numa projectada cruzada peninsular;
- Quando regressou a Roma em 1153, 1157 e 1163, a fim de esclarecer a recusa de se sujeitar ao arcebispo de Toledo e, finalmente, conseguir a plena independência eclesiástica;
- Quando participou nos acordos com o rei Fernando II de Leão [1137-1188] para o casamento com a infanta D. Urraca [1151-1188], em 1165;
- Quando ele mesmo, antecipando-se a D. Afonso Henriques, “simul et bracharense ecclesie clerus una cum regis portugalensis aldefonsi consensus”, fez doações em nome do “Rei”, como, por exemplo, em Agosto de 1145, confirmou uma doação do seu antecessor, em que fora feita mercê à ordem do Templo, de umas casas e acrescentou mais metade dos dízimos dos locais de compra e venda na mesma cidade de Braga, apondo o castigo da excomunhão a quantos fossem contra as suas determinações em causa…
Na Primavera de 1139, foi a Roma para receber o pálio e a confirmação que Inocêncio II lhe concedeu pela bula Bracharensem metropolim insignem, de 26 de Abril. Nesse ano, assistiu ainda ao Concílio geral de Latrão, iniciado a 3 de Abril. Aqui contraiu estreita amizade com o abade de Claraval, S. Bernardo, por quem ficou sempre muito afeiçoado, cremos que pela afinidade de ideias e intentos e ainda pelo bom acolhimento que os Cistercienses haviam encontrado em Portugal. Não foi mais do que uma Ordem resultante da antiga regra beneditina.
Escreveram-se por diante muitas cartas, algumas delas endereçadas pelo arcebispo ao santo abade.
Terminado aquele, ficou ainda em Roma para conseguir a confirmação papal dos principais empreendimentos eclesiais em que antes participara: a 26 de Abril, era-lhe passada uma bula de ratificação dos seus direitos metropolíticos (confirmando a bula anterior de Calisto II de 1121, obtida por Paio Mendes) e do senhorio temporal sobre a cidade de Braga; mencionava, expressamente, não só as dioceses sufragâneas da antiga província da Galécia (exceptuando Compostela), mas ainda as de Coimbra, Idanha, Lamego e Viseu, que haviam outrora pertencido à Lusitânia, apesar de os direitos de Mérida terem sido transferidos para Compostela. No dia seguinte, a chancelaria pontifícia entregava-lhe duas bulas de confirmação dos privilégios de Santa Cruz de Coimbra, e uma terceira pela qual o Papa tomava o mosteiro de Grijó sob sua protecção, o que vinha confirmar a isenção da jurisdição episcopal que o próprio D. João havia concedido ao mesmo mosteiro, enquanto bispo do Porto.
Se a vassalagem de D. Afonso Henriques à Santa Sé, consumada em Zamora, em 1143, não originou qualquer reparo da parte de Afonso VII, o mesmo não aconteceu com a sagração dos bispos de Lisboa, Viseu e Lamego, por D. João Peculiar, quatro anos depois. Reclamou junto da Santa Sé, mas depressa se aquietou, ou pelas manifestações de apreço que aí alcançara ou pelos problemas que Aragão e Navarra lhe levantavam.
O apoio do clero secular pode ser sintetizado numa só personagem: D. João Peculiar sempre se revelou defensor integrista dos direitos da sua Sé, face às de Castela, e verdadeiro agente de Afonso Henriques na cúria romana, como o foi em cortes de seus homólogos europeus, nomeadamente, Castela, Navarra, Aragão, Catalunha, França, Inglaterra, Bolonha (Sabóia, Itália) e Santa Sé.
Eugénio III, tendo em boa consideração a política levada a termo pelos seus predecessores, ordenou que os metropolitas bracarenses obedecessem aos toledanos e mandou D. João Peculiar (a Arquidiocese de Braga) continuar obediente a Toledo. O Arcebispo português é oferecido por vítima expiatória da homenagem feita pelo príncipe português e aceite pela Corte de Roma, como confere Herculano. O Arcebispo mais não pôde fazer do que obedecer, embora com muita relutância, como é fácil compreender-se.
Mas era um verdadeiro diplomata. Assim se revelou sempre para salvar o seu rei, o Reino e o seu nome.
A ele ficaram a dever-se as contínuas e persistentes conversações e as regulares insistências junto do Sumo Pontífice, no sentido de alcançar o reconhecimento da independência de Portugal. E isto sempre numa perfeita colagem dos seus objectivos, como arcebispo de Braga, com os do rei de Portugal.
Pelo que se tem dito e escrito, tudo leva a crer terem resultado cordiais as relações entre Afonso Henriques e o clero do seu jovem e inacabado Reino.
O governo do Príncipe, contemporâneo de novos movimentos espirituais da Cristandade, e assinalável pelo alargamento que as suas terras conheceram, foi propício à implantação ou ao desenvolvimento dos institutos religiosos regulares.
Se os beneditinos já fixados, gozaram da protecção e benemerência régia, por si mesmos ou por via dos seus patronos, a quem o monarca se mostrou reconhecido por favores prestados, foram sobretudo as novas correntes, recém-chegadas, a usufruir do favor real. De facto, Cónegos Regrantes de Santo Agostinho e Cistercienses emergiram na documentação afonsina.
Aos primeiros, ligou-se Santa Cruz de Coimbra, logo após a sua fundação, pelo futuro Arcebispo. A construção iniciou-se a 28 de Julho de 1131, no local onde existiam os "banhos régios", então ainda fora dos muros defensivos da cidade, e a duas escassas centenas de metros da fronteira portuguesa com as terras islâmicas: o Rio Mondego. Se a fundação foi régia, não deixou de ser importante a acção junto do jovem Príncipe, do Arcediago D. Telo e do Mestre-Escola D. João Peculiar. Logo no ano seguinte, São Teotónio foi eleito prior da comunidade religiosa, que contava já, em 1132, com setenta e dois membros. Afonso Henriques mostrou-se-lhe particularmente afecto, quer pela relação com S. Teotónio quer pela contemporaneidade da fundação com a sua estada na cidade do Mondego, ou ainda porque Santa Cruz de Coimbra se apresentou receptiva a mais um objectivo de conquista: a missionação em terra de fronteira, de que foi exemplo, nos anos imediatos, o presbítero Martinho, em Soure. Santa Cruz de Coimbra encarnava, assim, um novo ideal e um novo modelo de monaquismo, em sintonia com propósitos da realeza (É em Santa Cruz que se dizem depositados os restos mortais de Afonso Henriques).
Os segundos, provavelmente entrados em data próxima dos anteriores, vieram, igualmente, a ser agraciados com os favores de Afonso Henriques: Lafões, Tarouca, Salzedas, Maceira-Dão, Seiça, Tomarães e, principalmente, Alcobaça. Nascidos ou passados para a sombra de Cister, todos conheceram doações de bens e de direitos pelo Príncipe português e seus sucessores. Foram extraordinários agentes de repovoamento, destacando-se, sobremaneira, Alcobaça.
Finalmente, um outro grupo sobressai na sua documentação: é o dos eremitas, a demonstrar a sua força, no momento (1133-1148), em Portugal, e a atenção que o rei lhes dispensou.
Os fluxos migratórios parecem ter sido realizados em grupos algo compactos, onde chegava mesmo a observar-se a tendência para uma “agremiação” socioprofissional, levando à formação de novos e múltiplos povoados aldeãos com uma certa especialização artesanal. Isto verificou-se, por exemplo, em León. Mas o mesmo poderemos afirmar para o território português, se tivermos presente o caso de Lafões, em cujas imediações, por 1020, o rei mouro sevilhano, Abulcacim, em razia que realizava em território beirão, conquistou dois castelos defendidos por moçárabes, capturando cerca de trezentos deles.
Lafões era comarca, desde cedo, com um alargado perímetro de jurisdição. Recorde-se, por exemplo que, no couto de Alcofre (actual c. de Vouzela), de Lourenço Vicente, havia um chegador da escolha deste nobre que metia nele alguns jurados para o ajudarem a prender os malfeitores e outros delinquentes, que, posteriormente, entregavam à justiça régia de Lafões e, a seu mandado, por ali permaneciam nos diferentes úteis afazeres com vista ao aproveitamento de leiras, quintãs e granjas e na defesa da região, a que o Rei não podia ser indiferente.
Sem dúvida, Peculiar revelou-se sempre um dos maiores prelados bracarenses de todos os tempos, trabalhando incansavelmente durante trinta e sete anos, pelo engrandecimento da sua diocese, metrópole e todo o Portugal já conquistado:
a) Enriqueceu o seu património com a aquisição dos coutos e igrejas de Provezende, Gavieiras, Santa Cruz do Douro, Cossourado, S. João do Souto e muitos outros bens.
b) Reorganizou o cabido, ao qual deu, em 1145, um terço de todos os rendimentos, bens, igrejas e arcediagos da diocese.
c) Mandou ocupar amplos territórios das dioceses de Lamego e Viseu, ordenando que os administrassem, à morte de D. Bernardo, bispo de Coimbra, que faleceu em 26 de Janeiro de 1146.
d) A perspicácia de Afonso Henriques e do Arcebispo de Braga é bem demonstrada pelo facto de ambos terem sabido aproveitar esse momento oportuno para mais um importante acto de gestão do território, numa perfeita aliança entre o temporal e o espiritual que, em certos casos, era efectivamente benéfica.
e) Pelo estatuto de 1165, elevou a 40 o número dos cónegos, entre os quais havia as dignidades de deão, chantre, mestre-escola e tesoureiro.
f) Neste mesmo ano (1165), doou-lhe metade do couto e a igreja da Apúlia.
g) Em 1173, confirmou-lhe a divisão de 1145, mantendo a porção canónica a qualquer cónego que, devidamente autorizado, quisesse ir frequentar os estudos – quicumque canonicorum […] ad studium ire voluerit-, o que o tornou num dos primeiros beneméritos da instrução.
h) Cuidou da assistência, mandando fundar diversas albergarias.
i) Mais importante ainda foi a sua acção em favor da metrópole bracarense e da sua independência, lutando corajosamente contra as pretensões dos arcebispos de Compostela e de Toledo.
j) Não obstante a pressão do primeiro, além da reintegração dos bispados de Coimbra e Porto, temporariamente isentos de Braga, conseguiu manter como sufregâneas as dioceses de Lamego, Viseu, Lisboa e Évora, ou seja todas as do território português, embora com certas intermitências, sobretudo quanto às duas últimas.
k) Obteve também para a sua metrópole a diocese de Zamora, que o arcebispo de Toledo pretendia. Apelando para os direitos do primaz e legado, concedidos por Urbano II, tentou o arcebispo de Toledo impor a sua autoridade ao de Braga, mas este resistiu a todas as pressões e ameaças feitas, a pedido de Afonso VII de Castela, pelos papas, desde Lúcio II a Alexandre III, sujeitando-se apenas, momentaneamente, em 1150, mas causando agitada rebeldia e frequentes incómodos aos sucessivos Pontífices que pareciam teimosamente não recuar com a sua decisão, nem repensá-la sequer.
l) As tarefas foram gizadas logo de início, à semelhança dos grandes edifícios francos: o servitium Dei, o ofício divino no coro da igreja, a oração, a leitura, mesteres, manuais oficinais. E aqueles que eram escolhidos para cargos do oficialato monástico, trabalhavam nos celeiros, na hospedaria, na sacristia, no hospital, na portaria, na escrivaninha, onde liam, traduziam e copiavam… na enfermaria, na regulação dos trabalhos nas granjas e nos diversos sectores administrativos, estabelecendo as ligações com Braga, Coimbra e Roma, ainda a introdução e manutenção da schola ou studium. Da aprendizagem escolar e educativa são evidências os numerosos cónegos-escribas.
Não foi menos notável a sua acção política em favor dos interesses “nacionais”, podendo, segundo o modo de ver contemporâneo, chamar-se-lhe o ministro dos Negócios Estrangeiros de D. Afonso Henriques, uma vez que procurou garantir, no campo diplomático, as conquistas militares do monarca e uma interligação do Reino com o Estrangeiro. Foi ele, com efeito, que, num recontro no Vale do Vez, na Primavera de 1141, serviu de medianeiro para se conseguir a trégua entre os reis de Portugal e de Castela, preparando o ambiente para o acordo de Zamora. O recontro (torneio?) de Arcos de Valdevez terminou com um pacto de tréguas entre os dois primos, tendo tido forte influência D. João Peculiar, a quem o próprio imperador, segundo os Anais, recorreu para servir de mediador.
O Arcebispo de Braga em causa era um homem decidido e autoritário. Considerado, assim, por ambos, como um árbitro nas questões levantadas e não raras vezes. Em problemas que punham em causa, o direito internacional público da época, desempenhou um papel fundamental na procura de soluções dignas para os dois. Por ser o único metropolita em Portugal, achava-se com o direito de intervir em todos os assuntos eclesiásticos do País e, por deferência e preocupação, ainda as estritamente militares de D. Afonso Henriques e, de um modo geral, como vimos, em assuntos políticos do maior relevo. É comum ler-se a frequência como, depois de ter decidido e obtido os inerentes resultados, veio informar o rei e este lhe prestou alguma atenção, um tanto despreocupado, sabedor que era de que as matérias estavam em boas mãos.
Em 1143, foi a Roma, para, em nome do rei entregar a carta de enfeudamento de Portugal à Santa Sé (Claues regni coelorum) e prestar vassalagem ao Papa, sob condição de Portugal gozar de protecção da Igreja e não reconhecer outro poder eclesiástico ou civil, além da Santa Sé e seus legados.
Em 1143, o cardeal Guido de Vico que viera, por aquele ano à Península, como legado de Inocêncio II, reuniu em Valladolid um concílioprovincial, em que se promulgaram as resoluções do segundo concílio geral de Latrão e se adoptaram outras providências relativas especialmente à igreja de Castela. É provável que aí se tratassem também as pazes a concluir entre os primos, Afonso VII e D. Afonso Henriques, o que pode justificar a presença de D. João Peculiar, naquele concílio.
Em 1147, tomou parte na conquista deLisboa, onde fez um discurso a animar os cruzados ao ataque. D. João Peculiar, S. Teotónio e o Chanceler Alberto ajudavam o rei a tomar as decisões necessárias. Lisboa, pela sua grandeza, já naquele tempo, pela solidez das suas muralhas, pelos recursos que podia tirar do seu vantajoso assento sobre a vasta baia do Tejo, e o castelo de Sintra, por se achar situada no cimo de um rochedo quase inacessível e posto como na vanguarda de uma serrania “áspera e intratável” – para o que nos alerta Alexandre Herculano – contava, no resto do “distrito” com alguns castros e torres, posicionados pelos cabeços dos montes que amparavam aldeias e habitações rurais, derramadas pelos campos e vales que se espraiavam entre o Tejo e o Mar Oceano. Mas todas aquelas pequenas fortificações, bem rudimentares na sua maior parte, se existiam, era coisa de pouco momento, nunca referida pelos autores árabes e muçulmanos. A conquista de Santarém e Lisboa, no ano seguinte, 1147, tornaria a sua posição ainda mais forte. Foi com a tomada de Santarém que se deu início à reorganização do território visiense, do ponto de vista eclesiástico, restaurada antes de 1 de Maio daquele ano. Não exactamente depois da conquista de Lisboa, como se vem dizendo. Nesta data, já D. Odório, sagrado em Tui, é bispo de Viseu, para o que em nada terá concorrido a acção directa de D. João Peculiar, embora, de Braga, por certo, tivesse ditado normas, doutas opiniões e influenciado o arcebispado de Toledo.
Desde a tomada de Santarém, o pensamento de D. Afonso Henriques voltava-se para a de Lisboa, urbe importante, cuja situação, hoje grandemente acomodada para ser um dos principais empórios do comércio do mundo, se os erros dos políticos e fraca visão deles, de antolhos colocados desde que tomam posse, lho consentissem – a eles e a nós – não se prefigurava, nesse tempo, menos própria para centro da navegação costeira dos mares Oceano e Mediterrâneo e, sobretudo, para o trato entre a Mauritânia e a Europa.
D. João Peculiar foi o braço direito e forte do rei na reorganização de Santarém, Lisboa, Sintra e Palmela, logo após as suas conquistas (entre 1147 e 1166).
Nas orações que João Peculiar e o bispo do Porto - que, com alguns dos capitães estrangeiros foram enviados como intermediários -, proferiram em Lisboa, em 1147, parlamentando com os responsáveis mouros, os seus apelos iam no sentido da rendição dos muçulmanos. O arcebispo de Braga não se baseou tanto na teoria da guerra justa, como o fez o bispo do Porto, mas recorreu, de preferência, a um outro tópico de relevância substancial: o direito a recuperar o que já era seu, a referência à “reconquista” gótica que permitia a todos os reis peninsulares relegar de novo o ímpeto das forças dos reis hispânicos a desígnios superiores.
Reconhecidos como tais, logo que se abeiraram dos muros espessos e velhos, não tardaram a surgir no adarve o qaid da cidade e o bispo moçárabe, ainda os magistrados civis. Foi, então, que o Arcebispo de Braga encetou a discussão, com um longo mas pouco concludente discurso, propondo que entregassem o al-qacr e outras fortificações aos sitiadores, acordando com o alcacereiro que a propriedade, a honra e a vida dos habitantes seriam respeitadas e mantidas. Este acordo havia sido pouco antes jurado entre Afonso Henriques e os seus aliados, facto que põe em evidência a lealdade das promessas de D. João Peculiar. O referido juramento veio ainda dar origem a um documento, uma carta de fidelidade, amizade e segurança entre o rei e os mouros forros de Lisboa, Alcácer, Palmela e Almada, em 1170, em vida ainda do Arcebispo.
Neste caso, tratava-se de uma manifestação de respeito acerca do prometido pelo metropolita português, da parte do rei dos Portugueses, e não podia esquecer-se de que, além das funções religiosas, os bispos do Reino também eram proprietários temporais… Ao poder régio não seria indiferente quem ocupava tão distintos lugares na hierarquia do “Governo”, mas havia que, não esquecidamente, mas sempre em presença, ter-se em conta o papel da moirama que por cá ia ficando. Viviam nas suas aljamas fora das cidades, mas trabalhando, de Sol a Sol, nas terras dos Cristãos e em ofícios que lhes eram requeridos. Ainda os impostos a pagar em partes e as jeiras gratuitas que prestavam. A ter em atenção o conselho, a diplomacia, a função dos embaixadores, a solução pensada e acertada para casos que merecessem a sua atenção neste campo, dilatando, inclusivamente, o direito de asilo, se comparado com o mesmo estabelecido pelo estilo da Corte…Ainda a literacia e o ensino. E o rei pode vir a interferir em aspectos da igreja, como a designação dos bispos para as suas dioceses.
João Peculiar infringira, escudado em argumentos como a conquista de terras aos infiéis, diversas normas canónicas, sem que tal parecesse tê-lo limitado e constrangido. Pelo contrário, fá-lo-ia ao longo de todo o seu arcebispado, mesmo nos períodos em que se diz ter estado suspenso das suas funções pela Santa Sé, como em 1145 e 1148. Tal situação duvidamos que tenha alguma vez ocorrido, primeiro pela inexistência de notas de suspensão e depois, porque durante os mesmos, ele continuava a consagrar bispos, restaurar sés episcopais e a presidir a concílios com a participação de legados papais. Por tudo isto, a questão da legitimação do Rei e do Reino, e do seu reconhecimento, andava muito ligada aos progressos da questão do primado, especialmente a nível diplomático. Assim, embora o propósito mais visível das visitas de João Peculiar à cúria pontifícia pareça ter sido quase sempre o de resolver as questões ligadas com as querelas jurisdicionais com Toledo ou com Compostela, não podendo deixar de reparar-se em que quase todas as suas deslocações a Roma pareciam ter obedecido como que a um padrão rítmico que se coordenava de forma bastante significativa com os progressos político-militares e territoriais do seu Rei e do País que iam caminhando para Sul a passos largos.
Em 1144, quando o pedido de vassalagem tinha sido entregue na Cúria, ele apresentou aí o pagamento correspondente ao censo prometido e recebeu a carta de protecção para Afonso Henriques; quando, em 1148, se deslocou a Roma para justificar a sua não obediência a Raimundo de Toledo, decerto aproveitou para reportar a conquista de Lisboa e a restauração de Lamego e Viseu, recebendo uma confirmação pontifícia das sufragâneas de Braga.
Parece não se ter esquecido de relevar a acção de muitos estrangeiros na tomada de Santarém, Sintra e sobretudo de Lisboa, como referimos já, provando à Santa Sé, o empenho da Europa e do Mundo conhecido então, na luta contra o infiel inimigo, liderada pelo “rei” e a importância estratégica e económica do nosso rincão. Muitos dos estrangeiros vindos na armada do conde de Areschot ficaram, como se sabe, residindo na cidade. Bastantes, entre eles, tomaram assento no interior da província, onde levantaram as suas tendas. As ordens de cavalaria, as catedrais, as corporações monásticas foram liberalmente dotadas nas terras adquiridas pela primeira vez. Algo ainda muito importante e que, decerto, foi realçado, teve a ver com o não reconhecimento por parte de Lúcio II de nada do que ficara estabelecido em Zamora no ano anterior, não se esquecendo este de recordar, no entanto, a obrigação de Afonso Henriques em continuar as operações militares que desenvolvera até então, além de solver o censo prometido (o equivalente a 120 gramas de ouro anuais).
Roma queria tudo. Por uma questão de prudência, D. João Peculiar há-de ter apaziguado os ânimos rebeldes de Afonso Henriques e obrigado o Rei a esperar por uma oportunidade de fazer ecoar pela Europa o sucesso da tomada de Lisboa. De lamentar que a História seja relutante à prossecução das evidências e oportunidades. Não seria de esperar que Lúcio II vivesse apenas mais esse ano e os Pontífices que se lhe seguiram tivessem mandado colocar nas arcas ou no contador do Arquivo da Chancelaria documentos políticos assaz importantes sem lhes dar a solução que mereciam.
A Sul de Leiria, na direcção do Ocaso, foi fundada, em 1153, uma alargada ala do mosteiro de Alcobaça, que veio a ser um dos mais célebres de Portugal e a cujos monges ficou a dever-se, sucessivamente, a cultura de uma extensa parte da Alta Estremadura, a qual até aí fora uma vasta solidão e, por muito tempo, pouco mais serviria do que um campo neutro entre cristãos e sarracenos. Nasceram, então vilas e aldeias por meio desses novos colonos, por quem o Rei distribuía terras e privilégios, como incentivo ao aumento demográfico e à eventual necessidade de defesa e de prosperidade económica.
Além de D. João Peculiar fazer saber em Roma e pela Europa estes sucessos e medidas que se iam tornando imprescindíveis, a par da construção de imponentes edifícios religiosos (uns mais do que outros), em 1157 e em 1163, também apresentou a tomada de Alcácer (24 de Junho de 1158): portanto, sempre mensagens de submissão e vassalagem por parte do Rei – símbolo do mais elevado Catolicismo -, apesar de se ter deslocado a esses encontros para responder sobre a sua contumácia em obedecer ao primado de Toledo. Braga reivindicava a total independência em relação a esta Sé de arquiepiscopado, a quem disputava ainda os direitos do primado, por pretender ter direito a usar esse título, com base na anterioridade da posse desse estatuto, que alegava ter usado desde tempos recuados, e que a interferência das esferas políticas nesta questão não deixava ao acaso o desfecho deste assunto. Ainda em 1150, João Peculiar, na sequência de mais uma hipotética suspensão, acabara por ir mesmo a Toledo, prestar obediência ao Arcebispo dessa metrópole como a seu primaz, por uma e única vez. O documento onde se regista este acto menciona que o rei Afonso Henriques enviara o arcebispo português a Toledo com o seu próprio filho primogénito, Henrique, que teria, então, 3 anos, e que Afonso VII, por seu turno, tinha enviado seu filho mais novo, Fernando, de 13 anos, causa reformandi pacis, no que parece ser um encontro entre eclesiásticos com uma óbvia leitura política.
Contudo, não parecia ter estado na natureza deste prelado (ou quem sabe, dos interesses da política portuguesa) manter tal estado de coisas, como sugere o facto de - como se conta -, logo em 1155, vir a ser suspenso, mais uma vez, desta feita pelo cardeal Jacinto, legado papal à Península, por causa da sua recusa em comparecer ao concílio provincial convocado e presidido pelo “Imperador” Afonso VII. Até final da sua vida, João Peculiar continuaria sempre a exercer a sua autoridade e o seu munus arquiepiscopal como se nada afectasse a sua legitimidade para o fazer, e recordando-se - e aos demais -, sem recuos por quaisquer dúvidas que houvesse, que a aceitação da vassalidade exclusiva à Santa Sé, o desvinculava de Afonso VII e da obediência à Igreja peninsular.
Neste ponto, a sua actuação aproximava-se muito da de Afonso, o senhor seu Rei que também reinou de facto, durante quase quarenta anos, exercendo o seu imperium sem limitações e como líder único de pleno direito, sem ligar ao facto de, apesar de nunca ter deixado de lutar pela legitimação do seu poder pelo Papa, ter recebido tão só o reconhecimento pontifício que lhe permitiria afirmar a sua identidade como dux, ou mero condutor do seu povo, e a existência do território pontifício o que daria azo a Roma afirmar a sua eclesiástica auctoritas dentro da terra como era, então considerado, e apenas, como reino independente e indivisível, com sucessão hereditária, em 1179, quando, por fim, a bula Manifestis probatum est argumentis lhe reconhecera esses poderes de jure.
Em 1163, o convento adere à ordem dos monges cistercienses, como aconteceu a quase todos os mosteiros beneditinos.
Em 1140, de Aveleiras para S. João de Tarouca haviam passado já para uma melhor situação: um edifício mais amplo – embora ainda um eremitério -, que, naquela freguesia de Tarouca, vieram a receber, nesse ano, ampliado, muito posteriormente, por meio de uma bula, através da qual Alexandre III os tomava e ao mosteiro sob sua protecção, isentando-os da solvência da dízima dos produtos das terras que eles, por si mesmos, cultivassem e dos gados que criassem. Ficavam dispensados do pagamento de entradas e saídas (as costumagens), em caso de transumância. Excepto da colheita régia e da visitação do Arcebispo e do Bispo, ficavam isentos do cumprimento de direitos reais. Não podiam cunhar moeda. Estas imunidades foram extensivas a S. Salvador de Grijó, actual concelho de Vila Nova de Gaia e freguesia de Grijó, e a Refoios do Lima.
Ao nível da vida religiosa, a grande novidade em Portugal no século XII foi o acolhimento dos Cistercienses por 1130. S. Cristóvão de Lafões teve, quanto a nós, um papel pioneiro – um projecto marcado por aquele que viria a ser arcebispo de Braga, João Peculiar – o de ter desenvolvido a irradiação cisterciense em Portugal, pese embora o que se tem afirmado comummente em relação a S. João de Tarouca. Desta feita, o modelo ético, comportamental, de estudos religiosos (naturalmente) e legislativo seguido pelos Cistercienses era proveniente de um modelo internacional implementado também em Portugal, embora o Capítulo Geral de uma canónica regrante assumisse, obviamente e por imperativo geográfico e de acomodação, um rumo próprio. Mas a base seria sempre a mesma.
Não será de pôr de parte ainda a figura de Peculiar, um dos seus fundadores, como é sabido, na relevante influência que pode ter tido, no importante papel da canónica crúzia.
No regresso de França, por 1126, fundou ou reorganizou o referido Mosteiro em Lafões que, mais tarde, confiou ao referido abade. Pelo seu desiderato e doutrina, “statuit monasterium apud Sanctum Christoforum”, de princípios regulares um tanto confusos, mas que evoluirão para as normas de São Bento, vindo, depois, a filiar-se na Ordem de Cister. Tensões houve-as sempre, embora em Portugal, de cada vez maior amplitude geográfica não impediam a Santa Sé de conservar as garantias e imunidades que fossem outorgadas a mosteiros isentos mas que eram – eles mesmos – fidelizados ao reforço do poder dos Papas, junto da autoridade diocesana
Pelo que ficou dito, acrescente-se que, à medida que íamos avançando pelo século XII, mais esta circunstância se impunha, a fim de estabelecer o Poder da Santa Sé acima da soberania imposta por Frederico I, Barba Ruiva, imperador do Sacro-Império romano-germânico. Mas a espiritualidade de Roma aumentava a secância e alargava os seus poderes comparativamente aos do Imperador de uma pretensa União Europeia na época que não podia fazer outra coisa que não fosse aceitar o aumento da manus papal. Esta circunstância de os soberanos adoptarem, de preferência, a supremacia espiritual sobre a temporal prova-se pelo princípio que tão regularmente fora invocado junto dos delegados imperiais: “No meu Reino quem é o imperador é o Rei”, sabendo nós, no entanto, que, igualmente a fim de fixar o seu poder, o rei de Portugal impunha limitações à Igreja e, por outro lado, precisando do seu auxílio e saber, ia distraindo do fisco avultados e numerosos meios para ter a clerezia nas mãos. Por outro lado, o termo Imperador tinha um significado um tanto alargado (e dúbio). O imperium era exercido pelo imperator, sendo que o primeiro significava soberania ou poder soberano (auctoritas una, indivisível, inalienável e imprescritível) e o segundo o que imperava, o rex no seu regnum, o governador ou imperador.
O grande auxiliar de sempre de D. Afonso Henriques, fora um religioso. Além de D. Teotónio [1080-1162] e, mesmo provavelmente, suplantando este, foi D. João Peculiar. O papel de conselheiro do Príncipe, residente no Paço, auferindo de moradia pela sua permanente acção na Cúria, para a resolução de problemas concretos e para a orientação da política régia, pelo menos em questões de maior importância, pertenceu-lhe até morrer.
O infante encontrou-se com ele, pela primeira vez, muito provavelmente, em 1131, quando preparava, com Teotónio, a fundação do Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra, cidade, em cuja catedral foi mestre-escola, sendo aí arcediago D. Telo [1076-1136], o qual acompanhou D. João Peculiar a Roma, a fim de impetrar de Inocêncio II [1130-1143] que o Instituto dos Cónegos Regulares de Santo Agostinho fosse restituído à sua primeira observância. Tornaram-no tributário da Santa Sé, obtendo de Inocêncio II a bula Desiderium quod, a 24 de Maio de 1135, a conceder-lhe a protecção papal e a isenção episcopal.Conseguiram a sua pretensão com muitos privilégios e indultos para o Convento de Santa Cruz de Coimbra, e regressaram a Portugal em Junho de 1135, onde o futuro rei residia. Deve, desde logo, ter apreciado a firmeza das convicções de D. João, o entusiasmo com que se empenhava numa fundação religiosa sem precedentes em Portugal, e a cultura que havia adquirido durante a sua estadia no seio dos intelectuais francos e agora já diplomado pela Universidade de Paris, antes de passar a mestre-escola daSé de Coimbra (c. de 1133). Sabe-se que foi, em 1138, transferido para Braga, sucedendo a D. Paio Mendes [1118-1137]. O prelado fundou um hospital para pobres, dotando-o com herdades e quintãs, e outros bens imóveis, entregando o hospital à administração dos Templários.
As bulas, como se sabe, traduzem a própria evolução interna da Santa Sé e da vontade do Papa e dos seus diáconos mais directos, as suas noções de primazia e de imperium (jurisdição) pontifícios, no agitado decurso de todo o século XII.
A fundação do referido mosteiro – como o refere Avelino de Jesus da Costa – ficou a dever-se à conjugação dos esforços de três ilustres personagens: D. Telo, arcediago da Sé de Coimbra, D. João Peculiar, mestre-escola da Sé de Coimbra e a D. Afonso Henriques.
Os vizinhos e moradores de Braga e das imediações, logo após a morte do fundador, usurparam bens do hospital. D. João Peculiar, assim que tomou posse da Arquidiocese de Braga, com o seu cabido, confirmou a doação do seu predecessor e, a pedido do príncipe D. Afonso Henriques, ordenou que fosse restituído ao hospital tudo quanto lhe havia sido usurpado. Trabalhou, incansavelmente, pelo engrandecimento e independência da diocese de poderes estranhos, e reorganizou o Cabido.
Nos representantes mais importantes da administração das novas catedrais, estabeleceram-se funções várias. De ordinário, eram os cónegos quem as desempenhavam. Presidido pelo deão, em rigor o mais antigo, o decanus, tinha na sua organização a administração interna e a justiça entregues ao archidiaconus. A fim de exercer uma superintendência nas paróquias rurais, havia os arciprestes, de archipresbiter. Os cónegos tinham a obrigação de orar e cantar em coro as horas do ofício divino, cuja direcção se achava a cargo do chantre (o cantor). A Catedral tinha a Escola Capitular para recrutamento e formação do clero, sob a direcção do cónego mestre-escola (magister scholarum). E as rendas da mesa capitular, ou seja, os rendimentos próprios do cabido, assim como a conservação do seu património, estavam confiadas ao tesoureiro.
É de ter em boa nota o que, então, D. João Peculiar ouvira dizer dos antipapas João XVI [997-998] e Gregório VI [1012/1058 ou 1059] que não conhecera, naturalmente, mas contemporâneos dos Papas romanos Gregório V [996-999] e Bento VII [974-983]. Estas lutas espirituais permitiram-lhe raros conhecimentos e sabedoria, raciocinar, optar e o poder de saber organizar, já para não falar daqueles com quem travara conhecimento directo, em Roma: de Calixto II a Alexandre III [1119-1175]
Podemos admitir, pois, pelo que ficou dito, que esta última faceta tivesse tido para D. Afonso Henriques um valor muito significativo. Na verdade, não obstante apenas ter conhecido o Cônsul, seu pai, de ouvir falar dele, dado que falecera tinha o Príncipe três anos, não podia esquecer a sua condição de filho de um estrangeiro, descendente de Roberto I, rei de França [865-923], trazendo consigo para a Hispânia ideias inovadoras, tendo-se empenhado na difusão de instituições religiosas e seculares do seu País de origem, e posto toda a sua força anímica ao serviço de uma grande ambição pessoal reformadora e de poder.
Digamos que eram já dois. Um tinha falecido, mas permanecia no pensamento do Aio e, apenas indirectamente, em D. João Peculiar. Também podemos imaginar que aquele lhe falasse, então, e com respeito e admiração, acerca do Conde D. Henrique [1066-1112] e do seu avô materno, Afonso VI, de Leão e Castela [1039-1109], e de quem este era filho: Fernando I, o Magno [1016-1065] ao qual havia ficado a dever-se a conquista definitiva de Tarouca, Lamego e Viseu até aos castelos da linha que conduzia a Seia, em 1147, e Coimbra, em 1164, aos quais devia grande parte da sua inesquecível glória no pacto de amizade que estabeleceram com os monges de Cluny. No plano cristão, Afonso VI, rei de Leão, fomentou a segurança do caminho de Santiago, impulsionou a introdução da reforma cluniacense em mosteiros do seu Reino e abriu as portas, por sugestão de sua mulher, D. Constança [1046-1093], à Ordem de Cister, na Hispânia, estabelecendo-a em Sahagún, escolhendo Bernard de Cluny, um cisterciense francês, como o primeiro arcebispo de Toledo, depois da “reconquista” desta, em 25 de Maio de 1085 [1086-1124], em que a pressão de Cluny foi imensamente forte, tornando-se irredutível no constante aconselhamento ao soberano. O Cônsul D. Henrique da Borgonha e tenente de Afonso VI em Portugale faz uma doação a Albert de Thibaud, a seus irmãos e a todos os franceses que não morassem na vila de Guimarães, no campo junto ao Paço do referido centro urbano. O facto levaria, mais tarde, D. Afonso Henriques, a julgar positivamente os Franceses e a sua utilidade no Condado, e a apreciar os critérios com que João Peculiar opinava sobre o que, então, se passava no Reino e no seio da Igreja, nas relações do temporal com o espiritual, e a sua intervenção activa, nas mais dinâmicas correntes religiosas da época.
Afonso deve também ter acompanhado com atenção o relato da viagem que João Peculiar fez a França e à Itália, em 1135, aquando do Concílio de Pisa, de cujas resoluções, ele, de regresso, lhe terá contado, sem dúvida, como decorrera a assembleia e quais as acções do papa Inocêncio II. Falou-lhe acerca de uma das conquistas da reforma gregoriana, que tinha sido a capacidade de o clero escolher as suas próprias autoridades, sem interferência dos reis e senhores feudais. Mas esta independência teórica traduzia-se, na prática, sobretudo desde 1123, pela eleição dos bispos em assembleias constituídas pelo clero da diocese (sobretudo os cónegos da catedral), embora na presença do rei e dos nobres. E falou-lhe, por certo, ainda numa hipótese que avançara já em Roma no sentido de ser reconhecida a independência a Portugal. Não era difícil explicar as circunstâncias: Afonso VII [1105-1157] acabara por herdar o trono da Galiza, em 1111, de Leão em 1126, de Toledo e Castela, em 1127 e começara a intitular-se, no ano do Concílio de Pisa, de Imperator Hispaniae, título que devia irritar seu primo, senhor do Condado Portucalense e que também nós não entendemos por quê. Afinal, onde estava o Império? Na união de Leão com Castela, num espaço territorial contínuo e de dimensões que em nada ajudavam a aceitá-lo? Nem os reis godos de tal se lembraram e os motivos que os autores aduziram eram, afinal, os mesmos.
No entanto, o título de Imperador significava, apesar de tudo, uma via que poderia mais facilmente fazer chegar a D. Afonso Henriques o de rei, título esse que enobrecia o nosso Príncipe e seu primo, com reis seus vassalos. E um rei sem Reino, era situação que o nosso Infante não aceitaria com facilidade. Também para D. João Peculiar que acompanhava de perto Afonso de Portugale, veria no título do Castelhano, uma maneira de fazer entender a Santa Sé com uma menor necessidade de argumentos para a obtenção do título de rei e da categoria de Reino a Afonso e ao território onde este “reinava”.
Não sendo diplomata de medos, quis, no entanto, atacar a questão, junto do Papa, para evitar acentuadas subalternidades do Príncipe de Portugal em relação a seu primo Afonso VII. Afinal eram netos e bisnetos de reis comuns e este era o mais válido dos argumentos, além do propósito de ambos residir na ‘reconquista’ territorial e na consequente luta ao infiel, cuja prioridade nunca seria esquecida, para vir a ser abandonada.
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Tendo sido designado cónego e mestre-escola do cabido de Coimbra, em 1131, juntamente com o arcediago D. Telo [1076-1136], de quem era conselheiro, fundou o Mosteiro de Santa Cruz da mesma cidade, o qual adoptou a regra dos Cónegos de Santo Agostinho.
Os esforços seriam e foram sempre recíprocos: Afonso fazia o que João Peculiar aconselhava, e este contribuía vivamente para a satisfação do orgulho e mando do seu “rei”.
Ora, apoiados por D. Afonso Henriques, D. Telo e D. João Peculiar tinham-se deslocado a Pisa, em 1135 - como referimos acima -, onde se encontrava Inocêncio II, levando, na “pasta” para despacho, além dos desideratos acima enunciados, também o pedido de protecção por parte da Santa Sé do citado mosteiro conimbricense, como tributário dela, e ainda a confirmação dos seus bens e a isenção da autoridade episcopal, o que lhes foi concedido por bula de 25 de Maio daquele ano.
Outro efectivo e importante auxiliar de D. Afonso Henriques, como já demos a conhecer, fora D. Teotónio. Teólogo e filósofo, prior da catedral de Viseu, era um homem honesto. Para ele, a verdade, a justiça, a dignidade… seriam a sua grande, porque indiscutível, prioridade. Humílimo, por duas vezes, rejeitou o título de bispo, mantendo-se apenas como Prior do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, embora nomeado bispo desta cidade pelo Papa Anastácio IV em 1153, cargo que recusou.
A importante função de conselheiro do rei, no “aparelho de Estado”, para a resolução de problemas concretos e orientação da política régia, pelo menos em questões de maior importância, deve ter pertencido, sobretudo, a D. João Peculiar, logo desde 1131, quando preparava, com D. Teotónio, a fundação de Santa Cruz. O Infante e Príncipe herdeiro da terra e da soberania de seu pai, apreciou, por certo, desde logo, a firmeza das suas convicções, o entusiasmo com que se empenhava na criação de uma instituição religiosa sem precedentes em Portugal, e a cultura que havia adquirido durante a sua permanência no Reino dos Francos. Podemos admitir que esta última faceta tenha atraído Afonso de uma maneira especial. Mais uma vez, o nosso Infante deveria ter presente a origem da Família do seu pai e a ligação de sua mãe a Afonso VI, protector endividado dos Cluniacenses e a sua tia-avó, D. Constança, que atendeu ao estabelecimento em Castela de monges Beneditinos cistercienses. Deste modo, voltamos a sublinhar parte dos motivos que levaram Afonso Henriques a admirar o futuro Bispo e a aceitar os critérios com que este memorável religioso julgava o que então se passava no Reino e na Igreja, e a sua intervenção activa, nas mais dinâmicas correntes religiosas da época. Religiosas, civis e, inclusivamente, militares, como veremos adiante.
É de ter em atenção que o Paço Real se achava em Coimbra e que já, desde muito cedo, a cidade, naturalmente sede de bispado, fora sempre, com Viseu, aquela a quem seus pais deram uma primordial atenção. D. Teresa e o Conde, seu marido, doaram à Sé de Coimbra o Mosteiro de Lorvão, em 1109, pouco antes de Afonso ter nascido, mais uma série de terras que para necessitarem de ser povoadas e trabalhadas foram engrossar o património da Sé e de particulares, como tivemos já ocasião de referir num outro nosso trabalho. Curiosamente, Lafões veria, desta forma, mais fortemente ligada a sua relação com Santa Cruz de Coimbra – com a Sé e com Coimbra, de um modo geral, a sede do Reino. Dos 275 documentos que se traduzem em cartas de doação das terras visienses àquela cidade e institutos religiosos, 42% foram entregues ao Mosteiro, ad populandum e ad plantadum, e correspondiam a terras em torno de S. Pedro do Sul, Lafões, Vouzela, Penacova, Santa Comba Dão, Lorvão e Tondela, entre outras: o velho cordão umbilical que nunca fora cortado entre S. Cristóvão de Lafões e Santa Cruz de Coimbra; do Mosteiro de Lorvão e Santa Cruz de Coimbra; da Catedral Visiense e Santa Cruz. E, por ora, D. João Peculiar, incumbia-se do Mosteiro crúzio conimbricense. Razões mais que suficientes para bem disporem um rei, e fazê-lo ter a maior consideração por quantos se encarregavam, então, daquela importante fundação.
Por influência de D. Afonso Henriques, foi D. João Peculiar nomeado bispo do Porto em 1136, sendo transferido para Braga, como arcebispo, no Outono de 1138. D. João desempenhou por dois anos as funções de bispo.
Enquanto bispo do Porto teve um papel preponderante nas Pazes de Tui, em 4 de Julho de 1137, estabelecidas entre os primos Afonso VII de Leão e Castela e D. Afonso Henriques, através do qual se encerraram, durante algum tempo, os conflitos que recuavam à batalha de Cerneja. O rebelde Infante português terá invadido a Galiza e conquistado a praça de Tui, junto ao rio Minho, aproveitando as pretensões de Afonso VII em relação ao reino de Navarra, com o qual estava em hostilidade aberta. Afonso Henriques terá tomado Tui com o apoio do rei de Navarra, numa iniciativa militar "à traição", em que conquistou alguns castelos na região tudense. Afonso VII, todavia, rapidamente recuperou Tui. D. Afonso Henriques, que nunca reconheceu o título de imperador e respectivos direitos a seu primo – o que não tinha, na realidade, razão de ser -, terá também, com esta iniciativa, marcado posição relativamente a essa sua recusa de vassalagem, que se estenderia ao seu projecto político de formação de um reino independente a partir do condado Portucalense. O bispo D. João e o ainda arcebispo – ao tempo D. Paio Mendes -, acompanharam D. Afonso de Portugal, e a entrevista deu-se com seu primo, coadjuvado, para o efeito pelos bispos de Segóvia, Tui e Ourense. Foram os cinco religiosos que trabalharam em prol da respectiva concórdia, que tomou lugar em 1137, mas de fraca valoração para Portugal.
Foi depois – como dissemos - eleito arcebispo de Braga, cargo que o obrigou a desenvolver intensos contactos com os poderes políticos portugueses e leoneses e com a cúria romana. Caso de especial significado foi o deste prelado, o qual ainda que sem ter sido cónego professo, apenas familiar e honorário, veio a atingir aquelas funções a par de uma fortíssima ascendência política que sempre exerceu junto do nosso futuro Rei.
Na defesa dos direitos da metrópole bracarense teve de sustentar longa e corajosa luta com os arcebispos de Compostela e Toledo, pelo facto de o primeiro lhe querer usurpar as dioceses sufragâneas e o de Toledo pretender sujeitá-lo à sua obediência. Promoveu ele mesmo, por autoridade pessoal suportada por Afonso Henriques, a passagem de um elevado número de acistérios das suas Dioceses à Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho.
O facto de Peculiar residir em Braga não o impediu de frequentar a corte régia, e de aí continuar a insistir com o Príncipe na concretização dos seus objectivos, trazendo, assim, benesses às novas ordens religiosas, e colaborando com o rei na resolução dos problemas políticos a que teve de dar solução. Pela segunda vez, foi a Roma, para receber o pálio que Inocêncio II lhe entregou, e assistiu, por ordem do pontífice, ao segundo Concílio de Latrão que tomou lugar em 1139, tendo sido o primeiro prelado português a estar presente num concílio geral.
D. João Peculiar, por essa ocasião, contraiu uma estreita amizade com o Abade de Claraval, D. Bernardo, firmando-se, desde então, uma intensa correspondência epistolar entre os dois prelados. Cuidou da assistência dos que dela necessitavam nos eremitérios difundidos pelo “Reino” e no que se refere à cultura, abriu as portas dos mosteiros a quantos pretendiam estudar para padres.
Verificamos isto mesmo por exemplo, ao notar por si a confirmação de uma série de diplomas régios do ano de 1140, favorecendo outra comunidade eremítica, a de Vilarinho de Parada, concelho de Santo Tirso actual, de um mosteiro dúplice que passava a feminino, o de Rio Tinto, dos cistercienses de S. João de Tarouca, no concelho de Tarouca de hoje, do alargamento dos domínios da Sé Catedral de Coimbra e do mais importante mosteiro beneditino da arquidiocese de Braga, o de Tibães, em Mire, no actual concelho de Braga, sistemas copiados, por outros posteriores, como o de Alcobaça (1178).
Mais tarde, no Verão de 1143, acompanharia o cardeal Guido de Vico nas suas visitas a Coimbra e ao Porto, apoiando os acordos de D. Afonso Henriques com Afonso VII em Zamora (5 de Outubro de 1143) e a vassalagem ao papa nas mãos do mesmo cardeal. Nos anos seguintes, vemo-lo ainda – o que, aliás, fez até morrer - a desempenhar um papel central em todas as mais importantes decisões religiosas, políticas e iniciativas do rei. Foi o que aconteceu:
- Quando ele, em 1142, propôs a D. Afonso Henriques nomear como chanceler-mor Mestre Alberto, que o deve ter ajudado a gizar o cargo de rei, como fonte de autoridade e de legitimidade, cumpridor da justiça: rex eris si recte faceris, para que qualis rex, talis grex, pois quae recte fiunt, nunquam benefacta peribunto. Estas e outras máximas já antigas e pelo Príncipe esquecidas teriam de voltar a ser lembradas. Só um Escrivão da Puridade se atreveria a chamar a atenção do seu Rei e foi o que ambos fizeram João e Alberto, tal a ascendência que tinham sobre ele;
- Quando dirigiu ao papa Lúcio II a carta Claves regni coelorum, em Dezembro de 1143, como resultado da assembleia de Zamora;
- Quando empreendeu uma nova viagem a Roma para persuadir o Sumo Pontífice a reconhecer o título de rei já usado por Afonso Henriques, na Primavera de 1144;
- Quando, em nome do rei, pediu aos condes de Maurienne, Amadeu III e Matilde d’Albon, a mão de sua filha Mafalda, com quem o soberano veio a casar em 1146;
- Quando, anos depois, interveio no pedido de casamento de D. Mafalda, filha de D. Afonso Henriques, com o conde Raimundo de Barcelona, acompanhado que foi a Tui com a rainha sua mulher e suas filhas e recebendo-o, na presença de D. João Peculiar, arcebispo de Braga, D. Mendo, bispo de Lamego, D. Isidro, bispo de Tui, D. Pedro, conde das Astúrias, o conde D. Ramiro e D. Vasco, mais D. Gonçalo de Sousa, D. Pedro Pais, seu alferes-mor e outros muitos ricos-homens, cavaleiros e comitiva;
- Quando contactou o monge cisterciense Bernardo de Fontaine, abade de Claraval, para ele encarregar os cruzados flamengos da colaboração no cerco de Lisboa;
- Quando participou, pessoalmente, com o rei na conquista de Lisboa;
- Quando, de acordo com o rei, nomeou e sagrou os bispos de Viseu – D. Odório [1147-1166] -, de Lamego – D. Mendo [1147-1173] - e de Lisboa – Gilberto de Hastings [1147-1166], como pode ver-se em 1147, tendo seguido D. Afonso Henriques na tomada de Lisboa, e aí sagrado o citado bispo lisbonense, D. Gilberto – foi ele quem dividiu as rendas da catedral, que, então, eram comuns ao arcebispado e ao Cabido. Incumbiu desta operação os seus dois arcediagos - Mendo Ramires e Pedro Osório - que fizeram a divisão em três partes, servindo de modelo a Braga: duas para a mesa do arquiepiscopado e uma para a mesa capitular;
- Quando tomou parte nas cúrias de 1150 e de 1155, em Leão e Toledo, para discutir o envolvimento português numa projectada cruzada peninsular;
- Quando regressou a Roma em 1153, 1157 e 1163, a fim de esclarecer a recusa de se sujeitar ao arcebispo de Toledo e, finalmente, conseguir a plena independência eclesiástica;
- Quando participou nos acordos com o rei Fernando II de Leão [1137-1188] para o casamento com a infanta D. Urraca [1151-1188], em 1165;
- Quando ele mesmo, antecipando-se a D. Afonso Henriques, “simul et bracharense ecclesie clerus una cum regis portugalensis aldefonsi consensus”, fez doações em nome do “Rei”, como, por exemplo, em Agosto de 1145, confirmou uma doação do seu antecessor, em que fora feita mercê à ordem do Templo, de umas casas e acrescentou mais metade dos dízimos dos locais de compra e venda na mesma cidade de Braga, apondo o castigo da excomunhão a quantos fossem contra as suas determinações em causa…
Na Primavera de 1139, foi a Roma para receber o pálio e a confirmação que Inocêncio II lhe concedeu pela bula Bracharensem metropolim insignem, de 26 de Abril. Nesse ano, assistiu ainda ao Concílio geral de Latrão, iniciado a 3 de Abril. Aqui contraiu estreita amizade com o abade de Claraval, S. Bernardo, por quem ficou sempre muito afeiçoado, cremos que pela afinidade de ideias e intentos e ainda pelo bom acolhimento que os Cistercienses haviam encontrado em Portugal. Não foi mais do que uma Ordem resultante da antiga regra beneditina.
Escreveram-se por diante muitas cartas, algumas delas endereçadas pelo arcebispo ao santo abade.
Terminado aquele, ficou ainda em Roma para conseguir a confirmação papal dos principais empreendimentos eclesiais em que antes participara: a 26 de Abril, era-lhe passada uma bula de ratificação dos seus direitos metropolíticos (confirmando a bula anterior de Calisto II de 1121, obtida por Paio Mendes) e do senhorio temporal sobre a cidade de Braga; mencionava, expressamente, não só as dioceses sufragâneas da antiga província da Galécia (exceptuando Compostela), mas ainda as de Coimbra, Idanha, Lamego e Viseu, que haviam outrora pertencido à Lusitânia, apesar de os direitos de Mérida terem sido transferidos para Compostela. No dia seguinte, a chancelaria pontifícia entregava-lhe duas bulas de confirmação dos privilégios de Santa Cruz de Coimbra, e uma terceira pela qual o Papa tomava o mosteiro de Grijó sob sua protecção, o que vinha confirmar a isenção da jurisdição episcopal que o próprio D. João havia concedido ao mesmo mosteiro, enquanto bispo do Porto.
Se a vassalagem de D. Afonso Henriques à Santa Sé, consumada em Zamora, em 1143, não originou qualquer reparo da parte de Afonso VII, o mesmo não aconteceu com a sagração dos bispos de Lisboa, Viseu e Lamego, por D. João Peculiar, quatro anos depois. Reclamou junto da Santa Sé, mas depressa se aquietou, ou pelas manifestações de apreço que aí alcançara ou pelos problemas que Aragão e Navarra lhe levantavam.
O apoio do clero secular pode ser sintetizado numa só personagem: D. João Peculiar sempre se revelou defensor integrista dos direitos da sua Sé, face às de Castela, e verdadeiro agente de Afonso Henriques na cúria romana, como o foi em cortes de seus homólogos europeus, nomeadamente, Castela, Navarra, Aragão, Catalunha, França, Inglaterra, Bolonha (Sabóia, Itália) e Santa Sé.
Eugénio III, tendo em boa consideração a política levada a termo pelos seus predecessores, ordenou que os metropolitas bracarenses obedecessem aos toledanos e mandou D. João Peculiar (a Arquidiocese de Braga) continuar obediente a Toledo. O Arcebispo português é oferecido por vítima expiatória da homenagem feita pelo príncipe português e aceite pela Corte de Roma, como confere Herculano. O Arcebispo mais não pôde fazer do que obedecer, embora com muita relutância, como é fácil compreender-se.
Mas era um verdadeiro diplomata. Assim se revelou sempre para salvar o seu rei, o Reino e o seu nome.
A ele ficaram a dever-se as contínuas e persistentes conversações e as regulares insistências junto do Sumo Pontífice, no sentido de alcançar o reconhecimento da independência de Portugal. E isto sempre numa perfeita colagem dos seus objectivos, como arcebispo de Braga, com os do rei de Portugal.
Pelo que se tem dito e escrito, tudo leva a crer terem resultado cordiais as relações entre Afonso Henriques e o clero do seu jovem e inacabado Reino.
O governo do Príncipe, contemporâneo de novos movimentos espirituais da Cristandade, e assinalável pelo alargamento que as suas terras conheceram, foi propício à implantação ou ao desenvolvimento dos institutos religiosos regulares.
Se os beneditinos já fixados, gozaram da protecção e benemerência régia, por si mesmos ou por via dos seus patronos, a quem o monarca se mostrou reconhecido por favores prestados, foram sobretudo as novas correntes, recém-chegadas, a usufruir do favor real. De facto, Cónegos Regrantes de Santo Agostinho e Cistercienses emergiram na documentação afonsina.
Aos primeiros, ligou-se Santa Cruz de Coimbra, logo após a sua fundação, pelo futuro Arcebispo. A construção iniciou-se a 28 de Julho de 1131, no local onde existiam os "banhos régios", então ainda fora dos muros defensivos da cidade, e a duas escassas centenas de metros da fronteira portuguesa com as terras islâmicas: o Rio Mondego. Se a fundação foi régia, não deixou de ser importante a acção junto do jovem Príncipe, do Arcediago D. Telo e do Mestre-Escola D. João Peculiar. Logo no ano seguinte, São Teotónio foi eleito prior da comunidade religiosa, que contava já, em 1132, com setenta e dois membros. Afonso Henriques mostrou-se-lhe particularmente afecto, quer pela relação com S. Teotónio quer pela contemporaneidade da fundação com a sua estada na cidade do Mondego, ou ainda porque Santa Cruz de Coimbra se apresentou receptiva a mais um objectivo de conquista: a missionação em terra de fronteira, de que foi exemplo, nos anos imediatos, o presbítero Martinho, em Soure. Santa Cruz de Coimbra encarnava, assim, um novo ideal e um novo modelo de monaquismo, em sintonia com propósitos da realeza (É em Santa Cruz que se dizem depositados os restos mortais de Afonso Henriques).
Os segundos, provavelmente entrados em data próxima dos anteriores, vieram, igualmente, a ser agraciados com os favores de Afonso Henriques: Lafões, Tarouca, Salzedas, Maceira-Dão, Seiça, Tomarães e, principalmente, Alcobaça. Nascidos ou passados para a sombra de Cister, todos conheceram doações de bens e de direitos pelo Príncipe português e seus sucessores. Foram extraordinários agentes de repovoamento, destacando-se, sobremaneira, Alcobaça.
Finalmente, um outro grupo sobressai na sua documentação: é o dos eremitas, a demonstrar a sua força, no momento (1133-1148), em Portugal, e a atenção que o rei lhes dispensou.
Os fluxos migratórios parecem ter sido realizados em grupos algo compactos, onde chegava mesmo a observar-se a tendência para uma “agremiação” socioprofissional, levando à formação de novos e múltiplos povoados aldeãos com uma certa especialização artesanal. Isto verificou-se, por exemplo, em León. Mas o mesmo poderemos afirmar para o território português, se tivermos presente o caso de Lafões, em cujas imediações, por 1020, o rei mouro sevilhano, Abulcacim, em razia que realizava em território beirão, conquistou dois castelos defendidos por moçárabes, capturando cerca de trezentos deles.
Lafões era comarca, desde cedo, com um alargado perímetro de jurisdição. Recorde-se, por exemplo que, no couto de Alcofre (actual c. de Vouzela), de Lourenço Vicente, havia um chegador da escolha deste nobre que metia nele alguns jurados para o ajudarem a prender os malfeitores e outros delinquentes, que, posteriormente, entregavam à justiça régia de Lafões e, a seu mandado, por ali permaneciam nos diferentes úteis afazeres com vista ao aproveitamento de leiras, quintãs e granjas e na defesa da região, a que o Rei não podia ser indiferente.
Sem dúvida, Peculiar revelou-se sempre um dos maiores prelados bracarenses de todos os tempos, trabalhando incansavelmente durante trinta e sete anos, pelo engrandecimento da sua diocese, metrópole e todo o Portugal já conquistado:
a) Enriqueceu o seu património com a aquisição dos coutos e igrejas de Provezende, Gavieiras, Santa Cruz do Douro, Cossourado, S. João do Souto e muitos outros bens.
b) Reorganizou o cabido, ao qual deu, em 1145, um terço de todos os rendimentos, bens, igrejas e arcediagos da diocese.
c) Mandou ocupar amplos territórios das dioceses de Lamego e Viseu, ordenando que os administrassem, à morte de D. Bernardo, bispo de Coimbra, que faleceu em 26 de Janeiro de 1146.
d) A perspicácia de Afonso Henriques e do Arcebispo de Braga é bem demonstrada pelo facto de ambos terem sabido aproveitar esse momento oportuno para mais um importante acto de gestão do território, numa perfeita aliança entre o temporal e o espiritual que, em certos casos, era efectivamente benéfica.
e) Pelo estatuto de 1165, elevou a 40 o número dos cónegos, entre os quais havia as dignidades de deão, chantre, mestre-escola e tesoureiro.
f) Neste mesmo ano (1165), doou-lhe metade do couto e a igreja da Apúlia.
g) Em 1173, confirmou-lhe a divisão de 1145, mantendo a porção canónica a qualquer cónego que, devidamente autorizado, quisesse ir frequentar os estudos – quicumque canonicorum […] ad studium ire voluerit-, o que o tornou num dos primeiros beneméritos da instrução.
h) Cuidou da assistência, mandando fundar diversas albergarias.
i) Mais importante ainda foi a sua acção em favor da metrópole bracarense e da sua independência, lutando corajosamente contra as pretensões dos arcebispos de Compostela e de Toledo.
j) Não obstante a pressão do primeiro, além da reintegração dos bispados de Coimbra e Porto, temporariamente isentos de Braga, conseguiu manter como sufregâneas as dioceses de Lamego, Viseu, Lisboa e Évora, ou seja todas as do território português, embora com certas intermitências, sobretudo quanto às duas últimas.
k) Obteve também para a sua metrópole a diocese de Zamora, que o arcebispo de Toledo pretendia. Apelando para os direitos do primaz e legado, concedidos por Urbano II, tentou o arcebispo de Toledo impor a sua autoridade ao de Braga, mas este resistiu a todas as pressões e ameaças feitas, a pedido de Afonso VII de Castela, pelos papas, desde Lúcio II a Alexandre III, sujeitando-se apenas, momentaneamente, em 1150, mas causando agitada rebeldia e frequentes incómodos aos sucessivos Pontífices que pareciam teimosamente não recuar com a sua decisão, nem repensá-la sequer.
l) As tarefas foram gizadas logo de início, à semelhança dos grandes edifícios francos: o servitium Dei, o ofício divino no coro da igreja, a oração, a leitura, mesteres, manuais oficinais. E aqueles que eram escolhidos para cargos do oficialato monástico, trabalhavam nos celeiros, na hospedaria, na sacristia, no hospital, na portaria, na escrivaninha, onde liam, traduziam e copiavam… na enfermaria, na regulação dos trabalhos nas granjas e nos diversos sectores administrativos, estabelecendo as ligações com Braga, Coimbra e Roma, ainda a introdução e manutenção da schola ou studium. Da aprendizagem escolar e educativa são evidências os numerosos cónegos-escribas.
Não foi menos notável a sua acção política em favor dos interesses “nacionais”, podendo, segundo o modo de ver contemporâneo, chamar-se-lhe o ministro dos Negócios Estrangeiros de D. Afonso Henriques, uma vez que procurou garantir, no campo diplomático, as conquistas militares do monarca e uma interligação do Reino com o Estrangeiro. Foi ele, com efeito, que, num recontro no Vale do Vez, na Primavera de 1141, serviu de medianeiro para se conseguir a trégua entre os reis de Portugal e de Castela, preparando o ambiente para o acordo de Zamora. O recontro (torneio?) de Arcos de Valdevez terminou com um pacto de tréguas entre os dois primos, tendo tido forte influência D. João Peculiar, a quem o próprio imperador, segundo os Anais, recorreu para servir de mediador.
O Arcebispo de Braga em causa era um homem decidido e autoritário. Considerado, assim, por ambos, como um árbitro nas questões levantadas e não raras vezes. Em problemas que punham em causa, o direito internacional público da época, desempenhou um papel fundamental na procura de soluções dignas para os dois. Por ser o único metropolita em Portugal, achava-se com o direito de intervir em todos os assuntos eclesiásticos do País e, por deferência e preocupação, ainda as estritamente militares de D. Afonso Henriques e, de um modo geral, como vimos, em assuntos políticos do maior relevo. É comum ler-se a frequência como, depois de ter decidido e obtido os inerentes resultados, veio informar o rei e este lhe prestou alguma atenção, um tanto despreocupado, sabedor que era de que as matérias estavam em boas mãos.
Em 1143, foi a Roma, para, em nome do rei entregar a carta de enfeudamento de Portugal à Santa Sé (Claues regni coelorum) e prestar vassalagem ao Papa, sob condição de Portugal gozar de protecção da Igreja e não reconhecer outro poder eclesiástico ou civil, além da Santa Sé e seus legados.
Em 1143, o cardeal Guido de Vico que viera, por aquele ano à Península, como legado de Inocêncio II, reuniu em Valladolid um concílioprovincial, em que se promulgaram as resoluções do segundo concílio geral de Latrão e se adoptaram outras providências relativas especialmente à igreja de Castela. É provável que aí se tratassem também as pazes a concluir entre os primos, Afonso VII e D. Afonso Henriques, o que pode justificar a presença de D. João Peculiar, naquele concílio.
Em 1147, tomou parte na conquista deLisboa, onde fez um discurso a animar os cruzados ao ataque. D. João Peculiar, S. Teotónio e o Chanceler Alberto ajudavam o rei a tomar as decisões necessárias. Lisboa, pela sua grandeza, já naquele tempo, pela solidez das suas muralhas, pelos recursos que podia tirar do seu vantajoso assento sobre a vasta baia do Tejo, e o castelo de Sintra, por se achar situada no cimo de um rochedo quase inacessível e posto como na vanguarda de uma serrania “áspera e intratável” – para o que nos alerta Alexandre Herculano – contava, no resto do “distrito” com alguns castros e torres, posicionados pelos cabeços dos montes que amparavam aldeias e habitações rurais, derramadas pelos campos e vales que se espraiavam entre o Tejo e o Mar Oceano. Mas todas aquelas pequenas fortificações, bem rudimentares na sua maior parte, se existiam, era coisa de pouco momento, nunca referida pelos autores árabes e muçulmanos. A conquista de Santarém e Lisboa, no ano seguinte, 1147, tornaria a sua posição ainda mais forte. Foi com a tomada de Santarém que se deu início à reorganização do território visiense, do ponto de vista eclesiástico, restaurada antes de 1 de Maio daquele ano. Não exactamente depois da conquista de Lisboa, como se vem dizendo. Nesta data, já D. Odório, sagrado em Tui, é bispo de Viseu, para o que em nada terá concorrido a acção directa de D. João Peculiar, embora, de Braga, por certo, tivesse ditado normas, doutas opiniões e influenciado o arcebispado de Toledo.
Desde a tomada de Santarém, o pensamento de D. Afonso Henriques voltava-se para a de Lisboa, urbe importante, cuja situação, hoje grandemente acomodada para ser um dos principais empórios do comércio do mundo, se os erros dos políticos e fraca visão deles, de antolhos colocados desde que tomam posse, lho consentissem – a eles e a nós – não se prefigurava, nesse tempo, menos própria para centro da navegação costeira dos mares Oceano e Mediterrâneo e, sobretudo, para o trato entre a Mauritânia e a Europa.
D. João Peculiar foi o braço direito e forte do rei na reorganização de Santarém, Lisboa, Sintra e Palmela, logo após as suas conquistas (entre 1147 e 1166).
Nas orações que João Peculiar e o bispo do Porto - que, com alguns dos capitães estrangeiros foram enviados como intermediários -, proferiram em Lisboa, em 1147, parlamentando com os responsáveis mouros, os seus apelos iam no sentido da rendição dos muçulmanos. O arcebispo de Braga não se baseou tanto na teoria da guerra justa, como o fez o bispo do Porto, mas recorreu, de preferência, a um outro tópico de relevância substancial: o direito a recuperar o que já era seu, a referência à “reconquista” gótica que permitia a todos os reis peninsulares relegar de novo o ímpeto das forças dos reis hispânicos a desígnios superiores.
Reconhecidos como tais, logo que se abeiraram dos muros espessos e velhos, não tardaram a surgir no adarve o qaid da cidade e o bispo moçárabe, ainda os magistrados civis. Foi, então, que o Arcebispo de Braga encetou a discussão, com um longo mas pouco concludente discurso, propondo que entregassem o al-qacr e outras fortificações aos sitiadores, acordando com o alcacereiro que a propriedade, a honra e a vida dos habitantes seriam respeitadas e mantidas. Este acordo havia sido pouco antes jurado entre Afonso Henriques e os seus aliados, facto que põe em evidência a lealdade das promessas de D. João Peculiar. O referido juramento veio ainda dar origem a um documento, uma carta de fidelidade, amizade e segurança entre o rei e os mouros forros de Lisboa, Alcácer, Palmela e Almada, em 1170, em vida ainda do Arcebispo.
Neste caso, tratava-se de uma manifestação de respeito acerca do prometido pelo metropolita português, da parte do rei dos Portugueses, e não podia esquecer-se de que, além das funções religiosas, os bispos do Reino também eram proprietários temporais… Ao poder régio não seria indiferente quem ocupava tão distintos lugares na hierarquia do “Governo”, mas havia que, não esquecidamente, mas sempre em presença, ter-se em conta o papel da moirama que por cá ia ficando. Viviam nas suas aljamas fora das cidades, mas trabalhando, de Sol a Sol, nas terras dos Cristãos e em ofícios que lhes eram requeridos. Ainda os impostos a pagar em partes e as jeiras gratuitas que prestavam. A ter em atenção o conselho, a diplomacia, a função dos embaixadores, a solução pensada e acertada para casos que merecessem a sua atenção neste campo, dilatando, inclusivamente, o direito de asilo, se comparado com o mesmo estabelecido pelo estilo da Corte…Ainda a literacia e o ensino. E o rei pode vir a interferir em aspectos da igreja, como a designação dos bispos para as suas dioceses.
João Peculiar infringira, escudado em argumentos como a conquista de terras aos infiéis, diversas normas canónicas, sem que tal parecesse tê-lo limitado e constrangido. Pelo contrário, fá-lo-ia ao longo de todo o seu arcebispado, mesmo nos períodos em que se diz ter estado suspenso das suas funções pela Santa Sé, como em 1145 e 1148. Tal situação duvidamos que tenha alguma vez ocorrido, primeiro pela inexistência de notas de suspensão e depois, porque durante os mesmos, ele continuava a consagrar bispos, restaurar sés episcopais e a presidir a concílios com a participação de legados papais. Por tudo isto, a questão da legitimação do Rei e do Reino, e do seu reconhecimento, andava muito ligada aos progressos da questão do primado, especialmente a nível diplomático. Assim, embora o propósito mais visível das visitas de João Peculiar à cúria pontifícia pareça ter sido quase sempre o de resolver as questões ligadas com as querelas jurisdicionais com Toledo ou com Compostela, não podendo deixar de reparar-se em que quase todas as suas deslocações a Roma pareciam ter obedecido como que a um padrão rítmico que se coordenava de forma bastante significativa com os progressos político-militares e territoriais do seu Rei e do País que iam caminhando para Sul a passos largos.
Em 1144, quando o pedido de vassalagem tinha sido entregue na Cúria, ele apresentou aí o pagamento correspondente ao censo prometido e recebeu a carta de protecção para Afonso Henriques; quando, em 1148, se deslocou a Roma para justificar a sua não obediência a Raimundo de Toledo, decerto aproveitou para reportar a conquista de Lisboa e a restauração de Lamego e Viseu, recebendo uma confirmação pontifícia das sufragâneas de Braga.
Parece não se ter esquecido de relevar a acção de muitos estrangeiros na tomada de Santarém, Sintra e sobretudo de Lisboa, como referimos já, provando à Santa Sé, o empenho da Europa e do Mundo conhecido então, na luta contra o infiel inimigo, liderada pelo “rei” e a importância estratégica e económica do nosso rincão. Muitos dos estrangeiros vindos na armada do conde de Areschot ficaram, como se sabe, residindo na cidade. Bastantes, entre eles, tomaram assento no interior da província, onde levantaram as suas tendas. As ordens de cavalaria, as catedrais, as corporações monásticas foram liberalmente dotadas nas terras adquiridas pela primeira vez. Algo ainda muito importante e que, decerto, foi realçado, teve a ver com o não reconhecimento por parte de Lúcio II de nada do que ficara estabelecido em Zamora no ano anterior, não se esquecendo este de recordar, no entanto, a obrigação de Afonso Henriques em continuar as operações militares que desenvolvera até então, além de solver o censo prometido (o equivalente a 120 gramas de ouro anuais).
Roma queria tudo. Por uma questão de prudência, D. João Peculiar há-de ter apaziguado os ânimos rebeldes de Afonso Henriques e obrigado o Rei a esperar por uma oportunidade de fazer ecoar pela Europa o sucesso da tomada de Lisboa. De lamentar que a História seja relutante à prossecução das evidências e oportunidades. Não seria de esperar que Lúcio II vivesse apenas mais esse ano e os Pontífices que se lhe seguiram tivessem mandado colocar nas arcas ou no contador do Arquivo da Chancelaria documentos políticos assaz importantes sem lhes dar a solução que mereciam.
A Sul de Leiria, na direcção do Ocaso, foi fundada, em 1153, uma alargada ala do mosteiro de Alcobaça, que veio a ser um dos mais célebres de Portugal e a cujos monges ficou a dever-se, sucessivamente, a cultura de uma extensa parte da Alta Estremadura, a qual até aí fora uma vasta solidão e, por muito tempo, pouco mais serviria do que um campo neutro entre cristãos e sarracenos. Nasceram, então vilas e aldeias por meio desses novos colonos, por quem o Rei distribuía terras e privilégios, como incentivo ao aumento demográfico e à eventual necessidade de defesa e de prosperidade económica.
Além de D. João Peculiar fazer saber em Roma e pela Europa estes sucessos e medidas que se iam tornando imprescindíveis, a par da construção de imponentes edifícios religiosos (uns mais do que outros), em 1157 e em 1163, também apresentou a tomada de Alcácer (24 de Junho de 1158): portanto, sempre mensagens de submissão e vassalagem por parte do Rei – símbolo do mais elevado Catolicismo -, apesar de se ter deslocado a esses encontros para responder sobre a sua contumácia em obedecer ao primado de Toledo. Braga reivindicava a total independência em relação a esta Sé de arquiepiscopado, a quem disputava ainda os direitos do primado, por pretender ter direito a usar esse título, com base na anterioridade da posse desse estatuto, que alegava ter usado desde tempos recuados, e que a interferência das esferas políticas nesta questão não deixava ao acaso o desfecho deste assunto. Ainda em 1150, João Peculiar, na sequência de mais uma hipotética suspensão, acabara por ir mesmo a Toledo, prestar obediência ao Arcebispo dessa metrópole como a seu primaz, por uma e única vez. O documento onde se regista este acto menciona que o rei Afonso Henriques enviara o arcebispo português a Toledo com o seu próprio filho primogénito, Henrique, que teria, então, 3 anos, e que Afonso VII, por seu turno, tinha enviado seu filho mais novo, Fernando, de 13 anos, causa reformandi pacis, no que parece ser um encontro entre eclesiásticos com uma óbvia leitura política.
Contudo, não parecia ter estado na natureza deste prelado (ou quem sabe, dos interesses da política portuguesa) manter tal estado de coisas, como sugere o facto de - como se conta -, logo em 1155, vir a ser suspenso, mais uma vez, desta feita pelo cardeal Jacinto, legado papal à Península, por causa da sua recusa em comparecer ao concílio provincial convocado e presidido pelo “Imperador” Afonso VII. Até final da sua vida, João Peculiar continuaria sempre a exercer a sua autoridade e o seu munus arquiepiscopal como se nada afectasse a sua legitimidade para o fazer, e recordando-se - e aos demais -, sem recuos por quaisquer dúvidas que houvesse, que a aceitação da vassalidade exclusiva à Santa Sé, o desvinculava de Afonso VII e da obediência à Igreja peninsular.
Neste ponto, a sua actuação aproximava-se muito da de Afonso, o senhor seu Rei que também reinou de facto, durante quase quarenta anos, exercendo o seu imperium sem limitações e como líder único de pleno direito, sem ligar ao facto de, apesar de nunca ter deixado de lutar pela legitimação do seu poder pelo Papa, ter recebido tão só o reconhecimento pontifício que lhe permitiria afirmar a sua identidade como dux, ou mero condutor do seu povo, e a existência do território pontifício o que daria azo a Roma afirmar a sua eclesiástica auctoritas dentro da terra como era, então considerado, e apenas, como reino independente e indivisível, com sucessão hereditária, em 1179, quando, por fim, a bula Manifestis probatum est argumentis lhe reconhecera esses poderes de jure.
2. Organizando pari passu
“De facto, a observância no claustro de Santa Cruz ia de horizonte a horizonte. […] Era a casa-mãe da
ordem mais vasta e privilegiada do Reino. Claustro de fama, era ao mesmo tempo a aposentadoria real”
(Aquilino Ribeiro, Humildade Gloriosa)
A Canónica de Santa Cruz de Coimbra, fundada nos anos 30 do século XII, contou com a estreita colaboração e empenho daquele que viria a tornar-se arcebispo de Braga.
Duarte Galvão, na Crónica de D. Afonso Henriques - que D. Manuel I convidou a escrever sobre os seus feitos de grande louvor, sendo de considerar que “pêra obrar uirtudes, por mujto que naça com a pessoa, nam pode ser comprida nem auer perfeiçam senam per ajuda e graça diuinall” - contrapôs a perfeição nos feitos de D. João, pelo facto de ter cumprido e preparado tarefas ao seu rei, diminuindo a perfeição que se impunha realçar ao monarca. A História Seiscentista teria de envolver o Arcebispo em pecados horrendos que lhe tirassem força e poder, não igualando os do seu Senhor. Só que a História voltou a colocar no seu devido lugar a referida personagem – por factos difíceis de aceitar - quando, acusada de “actos de heresia”, a pôs na sua missão, completamente alheia aos ditos actos e às suas inevitáveis consequências. Assim a veremos. Assim a julgaremos.
Aquando da triste e irreflectida cavalgada contra o Castelo de Badajoz, não sabemos em que estado ficou realmente a perna de Afonso Henriques, que tipo de encontro se deu, nem qual o trato que os dois reis fizeram entre si. Apenas temos notícias mais concludentes de que o soberano português fora preso e libertado nessa luta nas caldas de Lafões, tendo aí permanecido entre Setembro e Dezembro desse mesmo ano. Foi, então, que exarou documentos vários, durante a sua recuperação física, apondo-se um sinal rodado com que a chancelaria régia autentica os documentos de Afonso Henriques, passando a incorporar o nome Sancho, com o epíteto de rei, ao mesmo tempo que secundariza ou omite os nomes dos restantes irmãos.
3. Insistindo na Resolução
Notas de fecho.
A vida política de D. Afonso Henriques
tal como a de D. João Peculiar começam
e acabam nas Caldas de Lafões.
(o autor, Viseu. 900 Anos depois, 2009)
Recapitulemos, precisando melhor, se possível, alguns dos motivos que levaram D. João Peculiar a certo tipo de atitudes e decisões políticas, agora, tão-só centrais.
Sendo assim, pode pôr-se a hipótese de a decisão de Afonso Henriques casar com uma filha de Amadeu III, conde de Sabóia e de Maurienne, ter ficado a dever-se a uma inspiração de reforço político por parte do inteligente Arcebispo, por alargamento de contactos com poderosos europeus e por quem está junto da Santa Sé, embora a justificação “oficial” que corria em Santa Cruz no fim do século XII fosse aquela que já apontámos. De qualquer maneira, a ligação matrimonial do rei de Portugal com uma sobrinha do rei de França (Luís VI) e filha de um vassalo do imperador romano-germânico distanciava-o do imperador hispânico, seu rival pelo uso de título idêntico. Mas mais importante ainda – repetimos – seriam as relações entre a Casa de Sabóia e a Santa Sé, pelo que, D. João Peculiar via, por certo, através deste matrimónio, abrirem-se as portas a mais fáceis e eficazes ligações diplomáticas entre Portugal e o Papado. De novo, D. João Peculiar ficara encarregado do contrato de casamento dos Infantes e de trazer Mafalda à Corte de Portugal.
Somos também sabedores de que as viagens feitas pelo Arcebispo de Portugal o puseram em contacto com muita gente e com personalidades bem colocadas nos centros europeus de poder. A respeito da vinda de D. Mafalda para o nosso Reino, tem-se-lhe atribuído, sempre ao nível da hipótese, pois não há documento que elucide verdadeiramente a questão, um papel de relevo na condução da Infanta junto de D. Afonso Henriques. A Infanta faleceu, pouco depois da tomada de Alcácer, a 3 de Dezembro de 1158, ficando-lhe dela um filho e três filhas: Sancho, Mafalda, Teresa e Urraca, todos ainda na infância, além dos quais tivera outra filha, D. Sancha, como alguns pretendem e dois rapazes, Henrique e João, falecidos ainda de tenra idade. Ao todo sete filhos, em 12 anos de casamento.
Como o papa Eugénio III [1145-1153] deliberasse celebrar concílio em Reims, em 1148, para nele se condenarem vários erros que começavam a ser noticiados, enviou a Portugal um delegado com o encargo de convocar os prelados. D. João Peculiar, arcebispo de Braga, reuniu na cidade um sínodo, para que os bispos tomassem conhecimento das resoluções do Sumo Pontífice; a ele assistiram o embaixador em Roma e seus oficiais mais notáveis.
Foi assim que o soubemos ter-se deslocado a Toledo – como acima dissemos -, com o pequeno infante Henrique [1147-?], porque, então, sucessor de seu pai, como o Arcebispo pretenderia mostrar para que começasse a hereditariedade a ser considerada, talvez também por tomar parte no Concílio de Toledo, de 16 de Maio de 1150. Aliás, a linha havia sido definida anteriormente: a D. Henrique sucedeu D. Teresa, em 1112, porque os hipotéticos herdeiros eram menores (recorde-se que D. Afonso Henriques tinha 3 anos, ou para lá ainda caminhava) e, em 1128, este retirou o poder das mãos da mãe para governar, tinha, então, 18 anos de idade e já tardava que D. Teresa se desembaraçasse do Poder e o entregasse ao Príncipe, maior para o efeito, desde os 14 anos. Por motivos vários, dependentes da interpretação de cada autor. Mas também, é inegável, - reforcemos -, porque o Infante, neto de Afonso VI, tinha, à altura, 18 para dezanove anos, e a ele deveria ter já passado o governo da Terra, da parte da Regente, sua mãe. O infante tinha Casa e ministros que o ajudariam na governação, como, aliás, se provou e uma das suas primeiras manifestações de poder interino mais significativo desta vertente terá sido o de mover os restos mortais do Cônsul seu pai de Astorga, “damdo hordem como o corpo de seu pay fosse muy homrradamente leuado a Samta Maria de Bragaa, homde sse mamdara lamçar”.
Em 1151, o Arcebispo empreende nova viagem a Roma. Foi junto do Sumo Pontífice sete vezes, a fim de defender os direitos da sua diocese e de Portugal, cuja independência ajudou a garantir, lutando contra os desideratos dos arcebispos de Santiago e Toledo, os quais, apoiados por Afonso VII, representavam a hegemonia castelhana.
Como atrás referimos, depois de Badajoz (1169), D. Afonso Henriques ficou em Lafões, em banhos em S. Pedro do Sul, desde Setembro, e aí deve ter reunido a sua cúria como parece demonstrar o documento de 13 de Novembro daquele ano, subscrito por todos os grandes do Reino, nobres e eclesiásticos. João Peculiar também aí esteve? E a 15 de Agosto de 1170, quando D. Sancho [1154-1211] foi armado cavaleiro em Santa Cruz de Coimbra? É possível que sim: o arcebispo de Braga estaria na cerimónia de Coimbra, juntamente com todos os homens que ligados à guerra por ofício do Reino não poderiam faltar, e em S. Pedro do Sul também.
A longa e corajosa luta travada com os arcebispos de Compostela e de Toledo na defesa dos bispados sufragâneos e da independência da sua metrópole era o meio mais eficaz para se obter a independência nacional, por aqueles terem o apoio de Afonso VII e representarem a hegemonia castelhana.
A documentação hoje existente a respeito da maioria destes factos permite, umas vezes, verificar a efectiva intervenção do principal conselheiro de Afonso Henriques; outras, ajuda apenas a formular hipóteses mais verosímeis, mas sem provas documentais explícitas, acerca do papel que o arcebispo de Braga decerto desempenhara constantemente. Em 1161, D. Afonso Henriques voltou a privilegiar os Cistercienses de Lafões, entre outros 19, anos antes e depois.
O acto de homenagem a Afonso VII, em 1139, foi testemunhado por Paio Mendes, arcebispo de Braga, João Peculiar, bispo do Porto, Pedro, bispo de Segóvia, Paio, bispo de Tui e Marinho, bispo de Orense.
O regresso vitorioso de D. Afonso Henriques em 1139 sucedeu pouco depois de D. João Peculiar voltar da 2.ª viagem à Itália. O fundador de Santa Cruz de Coimbra regressava à cidade onde vivera momentos de grande intensidade, juntamente com o prior D. Teotónio, mas agora investido no mais importante cargo eclesiástico de Portugal. Tinha sobre os seus ombros a responsabilidade não só de colaborar com as actividades religiosas de uma ordem nova, mais empenhada em responder às necessidades concretas dos homens, mas de dirigir toda a vida da Igreja no seu País. A responsabilidade temporal cabia ao príncipe que tinha apoiado, com tanto interesse, os primeiros passos da fundação que pretendia restaurar a “vida apostólica”, professada pelos primeiros cristãos em Jerusalém. O príncipe mostrava-se agora digno das esperanças que nele tinham posto os fundadores de Santa Cruz: o Arcebispo, D. Telo e D. Teotónio. A generosidade com que apoiara as novas correntes de vida religiosa, a coragem e capacidade de chefia que demonstrara na guerra contra os infiéis, a prudência com que organizara a sua corte, distribuindo as funções daqueles que o representavam e escolhendo os seus auxiliares, o equilíbrio que conseguira guardar entre as concessões feitas aos cavaleiros-vilãos dos concelhos e a adequada compensação dos membros da nobreza, tanto que fora e mostrava que o Príncipe seria capaz de conduzir o novo Reino como uma parcela privilegiada do povo de Deus em marcha para a realização da justiça, da prosperidade e da paz.
Tudo isto se apresenta decerto ao espírito de D. João Peculiar, não só porque parecia conjugar-se, na perfeição, com o ideal de pátria em que exercia tão grandes responsabilidades; mas também – e talvez sobretudo -, pois que regressava do próprio centro da Cristandade, onde o Papa representava o poder e a vontade de Deus, e, ao contacto com o qual, tivera o privilégio de participar em acontecimentos não menos representativos do que aqueles a que assistia ao regressar a Coimbra. Em Roma, no palácio de Latrão, juntamente com centenas de bispos de toda a Cristandade, assistira à solene proclamação da vitória do Papa Inocêncio II sobre o cisma que dividira a Igreja, contrapondo o partido das famílias romanas, dos Normandos sicilianos e dos sectores mais conservadores da Igreja ao sector que mostrava ser o preferido de Deus por ter do seu lado o imperador, o carismático abade de Claraval e as novas ordens dos Cistercienses, dos cónegos regulares, dos eremitas e das ordens militares. Os representantes do movimento renovador português tinham conseguido a benevolência e a protecção dos cardeais romanos, especialmente de Guido de Vico; tinham merecido a protecção do próprio Papa e haviam por certo chamado a atenção de São Bernardo. Por estes factos, estariam confiantes na protecção dispensada por Deus.
A surpreendente vitória do jovem Rei sobre o grande exército sarraceno e a quantidade de despojos que ele trouxera de Ourique (Vila Chã de Ourique, nos termos de Santarém?), como se fossem penhor da abundância prometida aos defensores da fé, eram uma espécie de milagre que se apresentava aos olhos de toda a multidão, participando, em uníssono, na celebração do triunfo, a chuva de bênçãos com que Deus cobria o seu novo povo, o Povo que o escolhera para Rei e sobre quem Deus outorgara o novo título pela dispensatio coelestis que lhe assistia. Mais o gérmen de um novo imperium no Mundo conhecido e desconhecido. Não fosse assim, César Manuel, como lhe chamou Duarte Pacheco Pereira, não pediria a redacção da Crónica do 1.º Rei de Portugal, com toda a auctoritas, para vir a legitimar a sua. Não fosse assim, as lendas que se transmitiram até hoje, não invocavam a acção da Virgem e de Jesus em Carquere e Ourique. Não fosse assim, não teriam pensado, custasse o que custasse, na reunião de umas Cortes em Lamego para, no século XVII, legitimarem os Bragança no trono de Portugal e a linha sucessória directa que D. João IV representava, perante o afastamento compulsivo de Filipe IV de Espanha do governo do nosso País.
*
Não é difícil imaginar a intensidade com que D. João Peculiar decerto viveu aqueles meses, com a consciência de também celebrar uma grande vitória, por ter atingido a dignidade de Arcebispo, por receber o pálio das mãos do papa, ao trazer consigo as bulas de reconhecimento dos direitos metropolitanos de Braga, em concorrência com Compostela, por tomar parte no concílio ecuménico de Latrão, pela solene proclamação do triunfo.
Em 1139, D. Afonso Henriques concedeu carta de couto a S. Cristóvão de Lafões, usando de uma política de favorecimento do local onde vivera grandes momentos de muita intensidade com o presbítero Telo e o prior Teotónio, até então muito pobres e errando pelo território, nas suas missões evangélicas. Recordando tempos difíceis para aqueles que, até então, se haviam desembaraçado de propagar a união das gentes através dos exemplos de Cristo, no conjunto de instituições cistercienses, D. Afonso Henriques outorgou benesses a eremitas, em número de 10; aos mosteiros beneditinos, 34; aos cónegos regrantes 30, aos cistercienses 19, às ordens militares 15, a outros 5 e às dioceses 32. A protecção deferida a eremitérios fora requerida, muito especialmente, por D. João Peculiar.
Não é de todo inverosímil que o contacto do Arcebispo e D. Telo com S. Bernardo no Concílio de Pisa tivesse inspirado neste a decisão de enviar a Portugal o grupo de oito monges de Claraval que o texto semilendário intitulado Exórdio do Mosteiro de S. João de Tarouca menciona e que teria sido orientado e apoiado por João Cirita na escolha do lugar onde, havia pouco, se fundara o referido Mosteiro.
A consolidação da vida regrante em Coimbra não foi fácil. Segundo Pedro Alofardek, em breve, surgiram as rivalidades com o bispo Bernardo e o cabido. Para escaparem às suas manobras, os regrantes trataram de defender-se, enviando à cúria romana uma delegação chefiada por Telo e João Peculiar, para pedir a protecção do Papa, adoptando um estatuto que, nessa época, se tornou frequente. Mostravam, assim, o seu carácter decidido e empeendedor. Não hesitaram em fazer uso dos meios materiais que tinham já conseguido reunir para poderem dominar a situação criada pela rivalidade com o Arcebispo, adoptando uma situação dispendiosa, mas eficaz. Agiam com a plena consciência de que faziam parte da igreja universal. Os seus problemas ligavam-nos a movimentos e transformações em pleno desenvolvimento, e que agitavam os sectores mais activos da Europa de então. Não se sentiam na periferia do mundo cristão. As viagens que faziam à cúria romana e a Avinhão, as frequentes visitas de legados papais à Hispânia, as não menos frequentes reuniões de concílios nos vários reinos peninsulares, as vastas assembleias de bispos promovidas pelos papas desde a segunda metade do século XI, a publicidade concedida às bulas e instruções pontifícias, enfim, as peregrinações a Roma, a Santiago e a outros santuários – tudo isto criava um ambiente de comunicação activa, encorajava as iniciativas e dinamizava toda a Cristandade. Telo e Peculiar foram bem homens do seu tempo.
Inocêncio II estava, então, em Pisa e impedido de regressar a Roma pelo cisma de Anacleto [1131-1138]. Foi lá que os dois portugueses, depois de uma longa viagem, encontraram a cúria papal. Dirigiram-se a Guido de Vico, cardeal de São Cosme e São Damião, que conhecia os assuntos da Península. No ano anterior, tinha estado em Compostela, desempenhando funções de legado, e voltaria à Hispânia no seguinte, em Outubro, para reunir um concílio em Burgos. Tendo suscitado a sua simpatia, os regrantes obtiveram o que pretendiam. Por isso, passaram a considerar o cardeal como um dos grandes benfeitores do mosteiro. A relação assim estabelecida foi muito importante, porque Guido de Vico se tornou, desde então, um verdadeiro especialista dos assuntos peninsulares e portugueses, como parte da Hispânia. Em 13 de Dezembro de 1143, o Arcebispo subscreveu o acto em que Afonso Henriques registou a vassalagem que fizera ao papa Inocêncio II por meio do Cardeal. Foi portador da carta oblationis à cúria pontifícia, de onde já tinha regressado em Setembro de 1144, com a resposta de Lúcio II, exarada a 1 de Maio, além da renovação dos privilégios da sua igreja, por letra papal, datada de 30 de Abril. Bem poderia ter aproveitado esta deslocação para sujeitar o Conde de Sabóia à proposta (ou a resposta) do casamento de D. Afonso Henriques.
O resultado concreto da viagem de Telo e de Peculiar foi a concessão das bulas em que o papa recomendou os cónegos regrantes de Coimbra ao príncipe D. Afonso e ao bispo da diocese, em 20 de Maio de 1135. Logo a seguir, em 26 de Maio, concedeu-lhes a protecção papal e a isenção canónica, nos termos que viriam depois a ser mais bem definidos pelo desenvolvimento das práticas institucionais, sobretudo a partir do pontificado de Alexandre III.
Dias depois, a 30 de Maio, o papa presidia à abertura solene de um importante concílio em Pisa, a que assistiram mais de cem bispos e muitos abades, entre eles, São Bernardo. Além de confirmar os decretos acerca de algumas questões institucionais adquiridas pela reforma da Igreja, pretendia fazer daquela reunião uma demonstração de força, de forma a desautorizar o antipapa. É muito provável que Telo e João Peculiar, que estavam de facto naquela cidade, tenham também participado no concílio, iniciando-se, então, porventura, as relações dos cónegos crúzios com o fogoso abade de Claraval, de que fala a Vida de S. Teotónio. Talvez Bernardo não se esquecesse do relato que Hugo de Payns tinha decerto feito, seis anos antes, no Concílio de Troyes, acerca da recepção prestada a si próprio e aos seus colaboradores na França e na Hispânia, e mencionasse os principais dons recebidos pelos Templários, entre os quais tomaria relevo a doação de D. Teresa. Quiçá, não datará também do possível encontro de São Bernardo com Telo e João Peculiar em Pisa o eventual conhecimento que o abade de Claraval teve das experiências eremíticas no vale do Douro, em que João Peculiar havia intervindo pessoalmente, e que este conhecimento abrisse o caminho ao envio dos primeiros cistercienses franceses a Portugal. Na verdade, encontram-se em Tarouca poucos anos depois, em 1140, e foram depois recebendo a sua ordem outros eremitérios durienses.
Interessado como estava na renovação da vida religiosa na Igreja, São Bernardo de Claraval não deixaria de ouvir com atenção o relato do que a esse respeito se passava no longínquo extremo da Península, no finisterra, lá para os lados do túmulo do apóstolo São Tiago, em lugares expostos à crueldade dos cavaleiros almorávidas.
O exemplo de Santa Cruz de Coimbra transmitia-se a outras comunidades monásticas já existentes no Condado Portucalense. Em 1134, João Peculiar, a pedido, decerto, dos religiosos, passou a observar a Regra de Santo Agostinho. Foi o primeiro de uma longa série de mosteiros de Entre Douro E Minho que, nos anos posteriores, lhe seguiram o exemplo. Eram, geralmente, mosteiros que, na remodelação da vida religiosa dos anos 1080 a 1120, não tinham querido receber os usos cluniacenses, e que dependiam do patronato de uma nobreza média ou mesmo inferior.
Em 1139, o chanceler arcebispo de Braga, D. Paio Mendes é substituído por D. João Peculiar, um conimbricense de formação francesa e um bom conhecedor das concepções impessoais do exercício do poder eclesiástico e civil que, por essa altura, começavam a inspirar a prática da cúria papal. O primeiro era, decerto, um aliado da aristocracia nortenha; não pode dizer-se o mesmo de D. João Peculiar que, com toda a probabilidade, procedia de uma família secundária e que defendeu mais fortemente a independência política do rei do que a sua submissão ao partido feudal.
D. João Peculiar, quando foi mestre-escola da Catedral de Coimbra, procurou os meios necessários para instalar os primeiros adeptos da sua obra, ao se proporcionar a ocasião de obter a ajuda de Afonso Henriques.
Os dois fundadores de Santa Cruz não esqueciam, porém, a sua condição de cónegos regrantes e a sua profissão sob a Regra de Santo Agostinho. Por isso, na viagem de regresso, procuraram visitar Pavia, onde, à época, se venerava o corpo do seu santo patrono, na esperança de conseguirem trazer alguma relíquia para o seu mosteiro. Não puderam realizar o seu intento, por terem sido roubados por salteadores e serem obrigados a tomar um itinerário mais directo. Partiram, então, para Avinhão, que ficava no caminho de regresso, e permaneceram no Mosteiro de São Rufo o tempo suficiente para obterem uma cópia do costumeiro de Letberto, onde se prescreviam observâncias muito mais pormenorizadas como é óbvio, do que a Regra de Santo Agostinho. Viria a ser esta a norma canónica coimbrã até ao fim da Idade Média, embora com algumas modificações e adaptações. Entre elas, salientam-se as que resultaram de uma clara e significativa influência dos usos cistercienses, nas suas versões mais antigas, como mostrou há pouco Agostinho Frias. De regresso a Coimbra, Telo, na altura, com uns 60 anos de idade, debilitado, talvez, por esta longa viagem, pouco tempo resistiu a um tumor de que morreu no dia 9 de Setembro de 1136.
A primeira recolha dos costumes rufianos foi feita por dois companheiros de Telo e de Peculiar que com eles viajaram, Domingos e João. Mas o contacto directo dos dois fundadores, com os seus confrades franceses mostrou-lhes que necessitavam de mais elementos para conseguirem organizar, com verdadeiro rigor, a vida religiosa de Santa Cruz. Para completar o trabalho de Domingos e João, Teotónio, pouco depois da morte de Telo, mandou a São Rufo outro cónego, Pedro Salomão, o qual permaneceu em Avinhão desde Novembro de 1136 até Março de 1137. Regressou a Portugal com o seu manuscrito a 24 de Junho, na mesma ocasião em que João Peculiar, eleito bispo do Porto, recebeu a ordenação episcopal. Não contente com a cópia completa que ele levou para Coimbra, Teotónio aproveitou a nova viagem que Peculiar fez a Roma para aí receber das mãos do Papa o palio a que tinha direito pela sua eleição como arcebispo de Braga, para mandar com ele o mesmo Pedro Salomão com outro copista conimbricense. Os dois crúzios permaneceram em São Rufo de Avinhão quase um ano, a partir de Abril de 1139, e regressaram a Coimbra carregados de livros. Trouxeram com eles não só as cópias dos textos necessários para as celebrações litúrgicas, mas também de obras de Santo Agostinho, de Santo Ambrósio, de São Gregório Magno e de Beda, o Venerável. Assim, o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, que, desde então, começou a tornar-se mais bem equipado, do ponto de vista intelectual, do que qualquer outra instituição portuguesa da mesma época, poderia, alguns anos mais tarde, assegurar a formação de um dos mais célebres pregadores medievais, o futuro franciscano Santo António de Lisboa.
D. João Peculiar, mestre escola da Sé de Coimbra, deve ter feito em França estudos suficientes para vir depois a encarregar-se do ensino na catedral. Todavia, não desempenhara, exclusivamente, funções intelectuais; colaborou, eficazmente, com as formas mais radicais da vida religiosa. Fundou em S. João de Lafões, em terras de que era proprietário, uma comunidade eremítica nessa altura dirigida por João Cirita, que viera, pouco depois, a adoptar os costumes cistercienses. Por volta de 1154 ou 1155, o bispo de Coimbra, D. João Anaia, escreveu um violento libelo contra D. João Peculiar, onde o acusava de ter tomado o hábito monacal sob a direcção de João Cirita e de o ter depois abandonado, infringindo, assim, os seus votos. Não sabemos o que há nisto de verdade, mas a sua relação com os movimentos eremíticos é indubitável e manteve-se mesmo depois de se tornar arcebispo.
De qualquer maneira, compreende-se a sua associação a D. Telo. Estavam ambos seduzidos pela “vida apostólica” e pelas experiências de vida pobre e despojada de bens materiais. Telo contactara com ela em Jerusalém e João Peculiar devia tê-la conhecido no Sul de França. Talvez tivesse estado em São Rufo de Avinhão e encontrado aí o abade Letberto. Telo também podia ter visitado este importante mosteiro quando regressou de Bizâncio e passou por Montpellier. Resolveram ambos criar uma comunidade do mesmo género em Coimbra. Uma vez adquiridos os banhos régios, alargaram a sua área, comprando ao bispo e ao cabido, seus proprietários, um horto contíguo, onde havia também uma nascente de água, e começaram as obras pela construção de um claustro. Associou-se a eles um bom grupo de colaboradores, alguns dos quais membros do clero da diocese. Um deles foi Teotónio, o primeiro prior da comunidade.
Lançaram a primeira pedra da igreja no dia 28 de Junho de 1131, na vigília da festa litúrgica dos santos apóstolos Pedro e Paulo, os patronos por excelência da vida apostólica. Afonso Henriques participou das suas celebrações,
O que sabemos da luta entre D. João Peculiar e o papado para ver reconhecidos os seus direitos sobre algumas dioceses portuguesas da antiga Lusitânia torna verosímil uma fricção séria entre o rei e os enviados da Santa Sé. Estava chegada a hora de insistir na questão de reconhecimento de Portugal e do rei em Roma, a qual fora, como nos pareceu, praticamente abandonada desde a data da última deslocação de D. João Peculiar a Roma, em 1163.
Uma vez libertado pelo genro, após o desastre de Badajoz, D. Afonso Henriques foi para Lafões ou, mais exactamente, para as terras de S. Pedro do Sul, onde permaneceu convalescente durante alguns meses, pelo menos entre Setembro e 13 de Novembro de 1169. Em Março de 1170, está, de novo, em Coimbra.
Vejamos:
Começam a desaparecer os mais fiéis auxiliares de Afonso Henriques, a saber:
S. Teotónio tinha morrido em 1162;
D. Gonçalo Mendes de Sousa, mordomo-mor, faleceu em 1167;
Mestre Alberto, o fiel chanceler-mor, redige o último documento assinado por ele em Setembro de 1169, quando o rei ainda continuava em Lafões;
D. João Peculiar, o grande inspirador das orientações diplomáticas e das relações como o Papa, deixou este mundo em 1175, considerado um dos maiores prelados bracarenses de todos os tempos e um dos heróis fundadores da “nacionalidade”.
Com o tempo, Afonso Henriques deixa o Norte entregue a cavaleiros-vilãos dos múltiplos centros urbanos já constituídos que vigiavam pela sua segurança e volta-se para o Sul. Entre 1169 e 1176, os protagonistas desta política mudam, mas a orientação mantém-se, e talvez se acentue. Cremos mesmo encontrar indícios de que o modus operandi fora conscientemente assumido em Lafões durante os meses de convalescença do rei. Na nossa opinião foi esse o motivo que presidiu à escolha de novos oficiais para a cúria.
Mas todos os documentos assinados em Lafões são confirmados pelo rei, o que significa que pai e filho estiveram aí juntos.
Num processo canónico acerca da relação de dependência do arcebispo de Braga para com o de Toledo, em Junho de 1217, uma testemunha afirmava que, durante os últimos dez anos de vida, Peculiar permaneceu doente e incapacitado de viajar para fora da sua arquidiocese. Todavia, temos provas de que, em 1169, continuava com energia suficiente para o fazer. Com efeito, presidiu, em 18 de Maio desse ano, à solene consagração da igreja abacial de Tarouca, na qual também participaram os bispos Pedro, do Porto, Mendo, de Lamego, e Gonçalo, de Viseu, como consta da inscrição lapidar que perpetuou o facto. Depois, desde Setembro até Novembro de 1169, confirmou todos os documentos de Afonso Henriques outorgados em Lafões, o que quer dizer que acompanhou a corte nesse período crucial de reorganização da autoridade régia e de revisão da política nacional.
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