Mértola Islâmica
Marco Monteiro, historiador
As ferramentas de um historiador são muitas vezes escassas e tornam difícil a tarefa de desvendar o melhor possível um passado longínquo que em muito contribuirá para uma melhor compreensão dos factos presentes. No entanto, quando desse passado começam a emergir provas e argumentos credíveis sob a forma de fontes, o historiador começa a sorrir e a partir daí monta gradualmente o seu palco e posteriormente exibe o espectáculo vivido muitos séculos antes do seu.
Apesar das fontes escritas se apresentarem como elementos indispensáveis à compreensão dos aspectos sócio-culturais, políticos e ainda religiosos do passado distante, as fontes arqueológicas lançam-nos numa aventura inigualável e emocionante, transportando-nos directamente aos nossos antepassados, como que uma viajem no tempo.
São investigações como as que Santiago Macías, um dos arqueólogos responsáveis pelas escavações que decorrem no Campo Arqueológico de Mértola, nos descreve na sua obra Mértola Islâmica – Estudo Histórico-Arqueológico do Bairro da Alcáçova (séculos XII-XIII), que permitem essa viagem ao passado, desvendando o dia-a-dia das civilizações mais antigas e acrescentando à historiografia medieval uma mais valia, de todo inegável.
Com Mértola Islâmica, seguirei também eu nessa viagem com o intuito de compreender melhor este núcleo urbano que até à data da sua reconquista (1238) se caracterizou por uma forte componente de fortificação islâmica.
A cidade de Mértola no período islâmico
A importância do termo de Mértola assume-se claramente como factor dependente da cidade de Beja ao longo de toda a sua história, situação que pode ser confirmada pelas fontes escritas, embora escassas, para o estudo de Myrtilis neste período. Na realidade, a existência de um porto fluvial que permitira durante séculos o contacto comercial com os portos do mediterrâneo oriental, transformou esta cidade num espaço político, administrativo e económico controlado pela antiga Pax Júlia (Beja). No entanto, a partir do século XI, Mértola adquire a qualificação de Madina, tornando-se desta feita numa cidade política e administrativamente autónoma (1).
Durante o período islâmico, o espaço territorial ocupado por esta cidade superava aquele que hoje actualmente caracteriza o seu concelho. O seu termo, e apesar das inúmeras alterações que as suas fronteiras sofreram, estava “delimitado a Sul pela ribeira de Vascão, a Oeste pelas matas de Almodôvar, a Norte pelas ribeiras de Cobres e Terges e pelo termo de Serpa e a Este pelos territórios de Alfajar de Peña e Ayamonte” (2), onde conjuntamente com as definições geográficas surgiam simultaneamente alguns elementos que marcavam o início de um novo termo, como sejam as torres, locais de culto e por vezes algumas ermidas.
Construída sobre um imponente esporão, Mértola assumiu uma posição estratégica excepcional. Na verdade, ao analisarmos pormenorizadamente a planta desta cidade rapidamente nos apercebemos das potencialidades da sua fortificação e até da forma como esta localização foi escolhida, situando-se entre o rio Guadiana e o Oeiras. (Fig.1)
Permanentemente em contacto com o exterior, quer através da existência de uma vasta rede viária onde a comunicação com Beja adquiria um papel primordial, quer através das vias fluviais estabelecedoras de importantes contactos comerciais, a fortificação assumia um papel de controlo alargado, uma vez que permitia a visualização de todos os movimentos processados fluvialmente e ainda através do caminho que ligava à capital de distrito. Para além do mais, o amuralhamento próprio desta cidade, caracterizado por um conjunto de construções reportadas ao início da romanização e com sucessivas remodelações e adaptações nos períodos posteriores, entre eles o islâmico, atestam a importância defensiva deste núcleo até à Baixa Idade Média, sendo visível alguns amuralhados de índole pré-imperial , imperial e tardo-romano e ainda caracteristicamente de origem islâmica. O período da Reconquista, à semelhança do que acontecera noutros locais, acabou por apagar algumas marcas do passado mertolengo, designadamente inúmeros aspectos da fortificação muçulmana.
Dentro desta malha citadina, é possível distinguir actualmente três áreas distintas, nomeadamente a alcáçova (espaço onde se centrará daqui por diante o nosso estudo), a Medina (cidade intra-muros) e ainda o arrabalde. Junto à alcáçova subsiste ainda hoje a mesquita (fig.2) que no período pós-reconquista terá sido transformada numa igreja consagrada a Santa Maria (prática aliás muito comum ao longo de toda a idade média). Outro aspecto que confirma mais uma vez a tradição medieval é o facto da área mortuária (o almocavar) situar-se fora de portas, à semelhança do mundo cristão.
O intenso comércio fluvial que ligava Myrtilis aos principais portos do Mar Mediterrâneo durante o período romano não cessou após a queda deste império. Na verdade, a presença durante o período islâmico de alguns artefactos utilizados no quotidiano das gentes mertolenses atesta a continuação das trocas comerciais estabelecidas com o mar interior, incluindo algumas importações do Norte de África.
Durante o período islâmico, o espaço territorial ocupado por esta cidade superava aquele que hoje actualmente caracteriza o seu concelho. O seu termo, e apesar das inúmeras alterações que as suas fronteiras sofreram, estava “delimitado a Sul pela ribeira de Vascão, a Oeste pelas matas de Almodôvar, a Norte pelas ribeiras de Cobres e Terges e pelo termo de Serpa e a Este pelos territórios de Alfajar de Peña e Ayamonte” (2), onde conjuntamente com as definições geográficas surgiam simultaneamente alguns elementos que marcavam o início de um novo termo, como sejam as torres, locais de culto e por vezes algumas ermidas.
Construída sobre um imponente esporão, Mértola assumiu uma posição estratégica excepcional. Na verdade, ao analisarmos pormenorizadamente a planta desta cidade rapidamente nos apercebemos das potencialidades da sua fortificação e até da forma como esta localização foi escolhida, situando-se entre o rio Guadiana e o Oeiras. (Fig.1)
Permanentemente em contacto com o exterior, quer através da existência de uma vasta rede viária onde a comunicação com Beja adquiria um papel primordial, quer através das vias fluviais estabelecedoras de importantes contactos comerciais, a fortificação assumia um papel de controlo alargado, uma vez que permitia a visualização de todos os movimentos processados fluvialmente e ainda através do caminho que ligava à capital de distrito. Para além do mais, o amuralhamento próprio desta cidade, caracterizado por um conjunto de construções reportadas ao início da romanização e com sucessivas remodelações e adaptações nos períodos posteriores, entre eles o islâmico, atestam a importância defensiva deste núcleo até à Baixa Idade Média, sendo visível alguns amuralhados de índole pré-imperial , imperial e tardo-romano e ainda caracteristicamente de origem islâmica. O período da Reconquista, à semelhança do que acontecera noutros locais, acabou por apagar algumas marcas do passado mertolengo, designadamente inúmeros aspectos da fortificação muçulmana.
Dentro desta malha citadina, é possível distinguir actualmente três áreas distintas, nomeadamente a alcáçova (espaço onde se centrará daqui por diante o nosso estudo), a Medina (cidade intra-muros) e ainda o arrabalde. Junto à alcáçova subsiste ainda hoje a mesquita (fig.2) que no período pós-reconquista terá sido transformada numa igreja consagrada a Santa Maria (prática aliás muito comum ao longo de toda a idade média). Outro aspecto que confirma mais uma vez a tradição medieval é o facto da área mortuária (o almocavar) situar-se fora de portas, à semelhança do mundo cristão.
O intenso comércio fluvial que ligava Myrtilis aos principais portos do Mar Mediterrâneo durante o período romano não cessou após a queda deste império. Na verdade, a presença durante o período islâmico de alguns artefactos utilizados no quotidiano das gentes mertolenses atesta a continuação das trocas comerciais estabelecidas com o mar interior, incluindo algumas importações do Norte de África.
A Alcáçova de Mértola
De acordo com as escavações levadas a cabo pela equipa de Santiago Macias, será na Alcáçova de Mértola que encontraremos uma visão política, económica e sócio-cultural deste núcleo urbano entre o século XI e XIII(3), período mais provável para a ocupação deste espaço uma vez que corresponde ao apogeu político-militar subsequente da implantação almorávida.
Apesar das sucessivas ocupações no terreno tornar complexa a identificação das estruturas aí existentes, torna-se concludente a presença de testemunhos arqueológicos referentes ao período romano imperial (figs. 3 e 4), nomeadamente um importante conjunto de carácter palatino situado sobre uma plataforma que possivelmente exerceria a função de fórum, destacando-se ainda um complexo termal que no período pós-reconquista viria a transformar-se num baptistério.
Desta forma, o bairro da alcáçova viria a ser construído sobre esta plataforma romana, reutilizando algumas estruturas e materiais aí existentes. A sua malha urbana conjugada com a rede viária pressupõe uma organização bem delineada, onde o conjunto habitacional se dispunha de forma coerente em todo o aglomerado urbano (figs.5 e 6), notabilizando um forte poder político capaz de organizar um espaço urbano e, tal como algumas fontes legislativas deste período o atestam, impor determinadas regras de âmbito público.
Mas a organização deste núcleo urbano não se espelha somente neste traçado rectilíneo, valorizando-se ainda mais com a presença de um sistema de canalizações com vista ao escoamento das águas pluviais e de uso doméstico, ruas bem delineadas e algumas fossas, tudo isto planeado antes da edificação da zona habitacional, no lugar onde o poder se instituía, a alcáçova.
Relativamente ao espaço público, este era quase sempre demarcado por um adarve(4) que servia de separação entre a rua e o espaço habitacional, onde regra geral apenas teriam acesso os seus moradores. Esta área poderia conter uma porta para salvaguarda dos seus habitantes em períodos menos estáveis ou mesmo como protecção contra eventuais ladrões.
Conforme referi mais acima, alguma legislação destinada à população tinha como objectivo impor determinadas regras de âmbito público. Para o caso específico de Mértola encontramos alguns tratados, nomeadamente os de hisba, que impunham obrigações aos habitantes da alcáçova no sentido de manterem as ruas em perfeito estado de limpeza. Era o caso dos indivíduos que abriam esgotos em plena via pública e que estavam obrigados à sua limpeza e conservação, sendo esta tarefa vigiada pelo almotacé, ainda que na prática nem sempre se processasse desta forma.
Ainda no âmbito da preservação do espaço público, denota-se uma certa discriminação relativa aos judeus e cristãos, cabendo a estes a execução de determinadas tarefas de limpeza na cidade, consideradas indignas para um muçulmano. Esta situação, embora na prática talvez não fosse bem assim, contrapõe-se significativamente à discriminação dos judeus e mouros nos núcleos urbanos cristãos.
O conjunto habitacional da alcáçova de Mértola, segundo o levantamento feito por Santiago Macias, rondava as três dezenas de casas, tendo já sido identificadas dez habitações. (fig.7) Utilizadas a taipa e o adobe na sua construção, algumas dessas habitações reflectem a presença de um certo ruralismo transferido para a cidade e patente em alguns compartimentos, como seja o lugar de guarda de animais.
Constituída por vários compartimentos, a casa muçulmana encontrava no pátio o seu lugar central (figs. 8 e 9), representando o espaço destinado ao labor doméstico onde as mulheres confeccionavam algumas refeições(5). Eram espaços de trabalho doméstico que poderiam ser decorados com algum requinte, dependendo da posição económica dos seus moradores, possuindo um pavimento normalmente ladrilhado e inclinado, ajudando assim ao escoamento das águas pluviais. Na realidade, esta característica encontrava-se aliada à construção dos telhados, pois também estes sofriam uma certa inclinação, com o mesmo propósito. (fig. 10)
Outro dos compartimentos com mais destaque nestas habitações era o salão que servia simultaneamente de local de trabalho e de repouso, onde se encontravam normalmente as alcovas que acolhiam a família durante a noite. De acordo com os resultados arqueológicos, parece que este local servia de pequena oficina de manufactura caseira de algumas mantas e outros bens de tecelagem. Para além deste espaço, foi também identificado um outro compartimento que alude para uma oficina de artesão, o que estabelece um certo paralelo com as habitações cristãs medievais em que “... a casa não servia apenas como residência, era também o local de trabalho”(6).
As moradias continham ainda um átrio que ajudava à protecção da privacidade dos seus moradores, onde também era regra a utilização de alguns símbolos de protecção relacionados com algumas superstições no seio das famílias muçulmanas, tais como as meias-ferraduras. Os materiais utilizados nos pavimentos oscilavam entre o xisto (em alguns compartimentos e inclusive no pátio) e a argamassa utilizada nos salões. A terra batida parecia ser a indicada em áreas como a cozinha No que concerne às coberturas, após a construção de uma estrutura de madeira seriam revestidas de telhas, situação aliás, muito idêntica às habitações que ocupam hoje o sul de Portugal.
Para além destas áreas, a habitação muçulmana da alcáçova de Mértola continha outro compartimento que comprova uma vez mais o grau de civilização destas gentes. A latrina, local totalmente pavimentado por telhas e onde os moradores efectuavam as suas necessidades fisiológicas, eram ladeadas por um cano de esgoto central, ou por uma fossa, por onde escoavam directamente os respectivos despejos.
Apesar das sucessivas ocupações no terreno tornar complexa a identificação das estruturas aí existentes, torna-se concludente a presença de testemunhos arqueológicos referentes ao período romano imperial (figs. 3 e 4), nomeadamente um importante conjunto de carácter palatino situado sobre uma plataforma que possivelmente exerceria a função de fórum, destacando-se ainda um complexo termal que no período pós-reconquista viria a transformar-se num baptistério.
Desta forma, o bairro da alcáçova viria a ser construído sobre esta plataforma romana, reutilizando algumas estruturas e materiais aí existentes. A sua malha urbana conjugada com a rede viária pressupõe uma organização bem delineada, onde o conjunto habitacional se dispunha de forma coerente em todo o aglomerado urbano (figs.5 e 6), notabilizando um forte poder político capaz de organizar um espaço urbano e, tal como algumas fontes legislativas deste período o atestam, impor determinadas regras de âmbito público.
Mas a organização deste núcleo urbano não se espelha somente neste traçado rectilíneo, valorizando-se ainda mais com a presença de um sistema de canalizações com vista ao escoamento das águas pluviais e de uso doméstico, ruas bem delineadas e algumas fossas, tudo isto planeado antes da edificação da zona habitacional, no lugar onde o poder se instituía, a alcáçova.
Relativamente ao espaço público, este era quase sempre demarcado por um adarve(4) que servia de separação entre a rua e o espaço habitacional, onde regra geral apenas teriam acesso os seus moradores. Esta área poderia conter uma porta para salvaguarda dos seus habitantes em períodos menos estáveis ou mesmo como protecção contra eventuais ladrões.
Conforme referi mais acima, alguma legislação destinada à população tinha como objectivo impor determinadas regras de âmbito público. Para o caso específico de Mértola encontramos alguns tratados, nomeadamente os de hisba, que impunham obrigações aos habitantes da alcáçova no sentido de manterem as ruas em perfeito estado de limpeza. Era o caso dos indivíduos que abriam esgotos em plena via pública e que estavam obrigados à sua limpeza e conservação, sendo esta tarefa vigiada pelo almotacé, ainda que na prática nem sempre se processasse desta forma.
Ainda no âmbito da preservação do espaço público, denota-se uma certa discriminação relativa aos judeus e cristãos, cabendo a estes a execução de determinadas tarefas de limpeza na cidade, consideradas indignas para um muçulmano. Esta situação, embora na prática talvez não fosse bem assim, contrapõe-se significativamente à discriminação dos judeus e mouros nos núcleos urbanos cristãos.
O conjunto habitacional da alcáçova de Mértola, segundo o levantamento feito por Santiago Macias, rondava as três dezenas de casas, tendo já sido identificadas dez habitações. (fig.7) Utilizadas a taipa e o adobe na sua construção, algumas dessas habitações reflectem a presença de um certo ruralismo transferido para a cidade e patente em alguns compartimentos, como seja o lugar de guarda de animais.
Constituída por vários compartimentos, a casa muçulmana encontrava no pátio o seu lugar central (figs. 8 e 9), representando o espaço destinado ao labor doméstico onde as mulheres confeccionavam algumas refeições(5). Eram espaços de trabalho doméstico que poderiam ser decorados com algum requinte, dependendo da posição económica dos seus moradores, possuindo um pavimento normalmente ladrilhado e inclinado, ajudando assim ao escoamento das águas pluviais. Na realidade, esta característica encontrava-se aliada à construção dos telhados, pois também estes sofriam uma certa inclinação, com o mesmo propósito. (fig. 10)
Outro dos compartimentos com mais destaque nestas habitações era o salão que servia simultaneamente de local de trabalho e de repouso, onde se encontravam normalmente as alcovas que acolhiam a família durante a noite. De acordo com os resultados arqueológicos, parece que este local servia de pequena oficina de manufactura caseira de algumas mantas e outros bens de tecelagem. Para além deste espaço, foi também identificado um outro compartimento que alude para uma oficina de artesão, o que estabelece um certo paralelo com as habitações cristãs medievais em que “... a casa não servia apenas como residência, era também o local de trabalho”(6).
As moradias continham ainda um átrio que ajudava à protecção da privacidade dos seus moradores, onde também era regra a utilização de alguns símbolos de protecção relacionados com algumas superstições no seio das famílias muçulmanas, tais como as meias-ferraduras. Os materiais utilizados nos pavimentos oscilavam entre o xisto (em alguns compartimentos e inclusive no pátio) e a argamassa utilizada nos salões. A terra batida parecia ser a indicada em áreas como a cozinha No que concerne às coberturas, após a construção de uma estrutura de madeira seriam revestidas de telhas, situação aliás, muito idêntica às habitações que ocupam hoje o sul de Portugal.
Para além destas áreas, a habitação muçulmana da alcáçova de Mértola continha outro compartimento que comprova uma vez mais o grau de civilização destas gentes. A latrina, local totalmente pavimentado por telhas e onde os moradores efectuavam as suas necessidades fisiológicas, eram ladeadas por um cano de esgoto central, ou por uma fossa, por onde escoavam directamente os respectivos despejos.
O Quotidiano no Bairro da Alcáçova
Fig.7 (Escavações na Alcáçova de Mértola)
Depois de analisarmos a composição do espaço arquitectónico respeitante aos moradores da alcáçova, torna-se pertinente o estudo do seu quotidiano, tarefa que uma vez mais nos é proporcionada pela arqueologia, mas também pelo auxílio de outras ciências tais como a arquezoologia e a paleobiologia. Através da primeira, é-nos possível decifrar alguns espaços e utensílios utilizados na preparação dos alimentos, enquanto que com as outras ciências podemos mais ou menos delinear qual a dieta alimentar seguida por estes indivíduos.
A cozinha foi sem dúvida uma área destinada ao fogo, local onde se cozinhavam alimentos e que estava directamente ligada à área central da casa, o pátio. No entanto, casos havia em que a cozinha dividia o seu espaço com um outro compartimento destinado ao armazenamento de alguns géneros alimentares. De acordo com Santiago Macias, para o armazenamento desses alimentos poderiam ser utilizadas algumas cerâmicas tais como as talhas destinadas ao armazenamento de água, frutos secos ou cereais, ou ainda os potes para a farinha, leguminosas ou azeitonas. Ao que parece, algumas cerâmicas de menores dimensões indicam-nos a sua utilização para produtos de origem medicinal ou mesmo para a conservação de azeite, mel ou gorduras animais. De referir ainda que o armazenamento de produtos alimentícios se devia não só ao facto das condições climáticas o exigirem, mas também pela forte componente supersticiosa que assolava esta civilização.
A área da cozinha era composta por uma lareira onde provavelmente o lume seria brando, tendo em conta o excelente estado das tijoleiras que compõem esta estrutura.
Ainda relativamente à cerâmica que foi possível recuperar nas escavações da alcáçova, torna-se perceptível a existência de dois tipos distintos: a louça de cozinha e a louça de mesa. Na realidade, a louça utilizada na cozinha era de uso vulgar e seria frequentemente substituída. Santiago Macias defende que esta cerâmica será de fabrico regional enquanto que a louça de mesa seria muito mais luxuosa e provavelmente importada dos principais centros oleiros andaluzes ou norte-africanos. Na categoria das cerâmicas de cozinha encontraram-se alguns fogareiros, panelas que permitiam a cozedura de determinado tipo de carne e as caçoilas(7).
A louça de mesa era uma cerâmica muito mais requintada e luxuosa, sendo composta por tigelas, bilhas e jarrinhas destinadas aos condimentos líquidos e algumas especiarias, púcaros e copos, alguidares e ainda outros objectos tais como as facas e os cutelos, normalmente utilizados no corte de animais abatidos.
Infelizmente a forma como eram consumidos os alimentos no seio familiar não é de todo conhecido, no entanto, sabe-se que as boas maneiras eram apreciadas pelas famílias muçulmanas, sendo inclusive alvo de legislação. A água era tomada com flor de laranjeira ou então de rosas e aconselhada a beber apenas durante as refeições.
Outras medidas coercivas se impunham no que concerne à confecção e consumo públicos, devendo os respectivos cozinheiros confeccionar os alimentos num local onde todos pudessem visualizar e respeitando alguns preceitos tais como a limpeza da carne, proteger a comida de animais indesejados e expô-la junto dos clientes para que se certificassem daquilo que efectivamente iriam comprar. Tais preceitos deveriam ser vigiados por uma espécie de fiscal designado por alamin.
As escassas fontes escritas relativas ao estudo da dieta alimentar dos habitantes de Mértola, aliada ao facto de algumas substâncias serem mais destrutíveis do que outras e dissimularem-se no tempo, tornam mais complexas o estudo desta área. No entanto, depois de examinadas algumas fossas e fornecidos alguns fragmentos osteológicos e de vegetais foi possível efectuar algumas ilações. Desta feita, e lembrando as palavras da Prof. Iria Gonçalves “...falar de alimentação na Idade Média é, em primeiro lugar, lembrar o pão”(8), e os cereais compunham de facto a alimentação destas gentes, combinando o pão com inúmeros pratos que ainda hoje se distinguem no sul pela sua primazia, como é o caso do gaspacho. Para além dos cereais (principalmente o trigo) acompanharam a dieta destes moradores da alcáçova os figos, o chícharo e a tainha, desempenhando um papel fundamental na subsistência popular. No que concerne à carne, englobam-se aqui a ovelha e a cabra, fruto de um grau elevado de pastorícia nesta região. Finalmente, algumas espécies marinhas como sejam a amêijoa fina, o berbigão e as ostras atestam uma vez mais o contacto directo com as zonas costeiras.
A cozinha foi sem dúvida uma área destinada ao fogo, local onde se cozinhavam alimentos e que estava directamente ligada à área central da casa, o pátio. No entanto, casos havia em que a cozinha dividia o seu espaço com um outro compartimento destinado ao armazenamento de alguns géneros alimentares. De acordo com Santiago Macias, para o armazenamento desses alimentos poderiam ser utilizadas algumas cerâmicas tais como as talhas destinadas ao armazenamento de água, frutos secos ou cereais, ou ainda os potes para a farinha, leguminosas ou azeitonas. Ao que parece, algumas cerâmicas de menores dimensões indicam-nos a sua utilização para produtos de origem medicinal ou mesmo para a conservação de azeite, mel ou gorduras animais. De referir ainda que o armazenamento de produtos alimentícios se devia não só ao facto das condições climáticas o exigirem, mas também pela forte componente supersticiosa que assolava esta civilização.
A área da cozinha era composta por uma lareira onde provavelmente o lume seria brando, tendo em conta o excelente estado das tijoleiras que compõem esta estrutura.
Ainda relativamente à cerâmica que foi possível recuperar nas escavações da alcáçova, torna-se perceptível a existência de dois tipos distintos: a louça de cozinha e a louça de mesa. Na realidade, a louça utilizada na cozinha era de uso vulgar e seria frequentemente substituída. Santiago Macias defende que esta cerâmica será de fabrico regional enquanto que a louça de mesa seria muito mais luxuosa e provavelmente importada dos principais centros oleiros andaluzes ou norte-africanos. Na categoria das cerâmicas de cozinha encontraram-se alguns fogareiros, panelas que permitiam a cozedura de determinado tipo de carne e as caçoilas(7).
A louça de mesa era uma cerâmica muito mais requintada e luxuosa, sendo composta por tigelas, bilhas e jarrinhas destinadas aos condimentos líquidos e algumas especiarias, púcaros e copos, alguidares e ainda outros objectos tais como as facas e os cutelos, normalmente utilizados no corte de animais abatidos.
Infelizmente a forma como eram consumidos os alimentos no seio familiar não é de todo conhecido, no entanto, sabe-se que as boas maneiras eram apreciadas pelas famílias muçulmanas, sendo inclusive alvo de legislação. A água era tomada com flor de laranjeira ou então de rosas e aconselhada a beber apenas durante as refeições.
Outras medidas coercivas se impunham no que concerne à confecção e consumo públicos, devendo os respectivos cozinheiros confeccionar os alimentos num local onde todos pudessem visualizar e respeitando alguns preceitos tais como a limpeza da carne, proteger a comida de animais indesejados e expô-la junto dos clientes para que se certificassem daquilo que efectivamente iriam comprar. Tais preceitos deveriam ser vigiados por uma espécie de fiscal designado por alamin.
As escassas fontes escritas relativas ao estudo da dieta alimentar dos habitantes de Mértola, aliada ao facto de algumas substâncias serem mais destrutíveis do que outras e dissimularem-se no tempo, tornam mais complexas o estudo desta área. No entanto, depois de examinadas algumas fossas e fornecidos alguns fragmentos osteológicos e de vegetais foi possível efectuar algumas ilações. Desta feita, e lembrando as palavras da Prof. Iria Gonçalves “...falar de alimentação na Idade Média é, em primeiro lugar, lembrar o pão”(8), e os cereais compunham de facto a alimentação destas gentes, combinando o pão com inúmeros pratos que ainda hoje se distinguem no sul pela sua primazia, como é o caso do gaspacho. Para além dos cereais (principalmente o trigo) acompanharam a dieta destes moradores da alcáçova os figos, o chícharo e a tainha, desempenhando um papel fundamental na subsistência popular. No que concerne à carne, englobam-se aqui a ovelha e a cabra, fruto de um grau elevado de pastorícia nesta região. Finalmente, algumas espécies marinhas como sejam a amêijoa fina, o berbigão e as ostras atestam uma vez mais o contacto directo com as zonas costeiras.
Como pudemos constatar através do excelente estudo efectuado por Santiago Macias, a alcáçova de Mértola caracterizou-se por um local onde reinava a organização urbana. Fruto de uma construção de raiz, embora reutilizando alguns materiais e estruturas do período romano, o Bairro da Alcáçova edificou-se e cresceu entre os séculos XI e XII, traduzindo-se numa época de apogeu onde não escapou a unificação levada a cabo por um dos seus conquistadores, Ibn Qasi.
Apesar da Reconquista cristã ter destruído algumas estruturas que tornariam mais nítidos os aspectos não meramente políticos, mas também sócio-culturais, o facto é que aqueles que subsistiram falam em nome do passado e transmitem-nos toda a emoção de uma viagem longínqua.
Mértola é hoje uma verdadeira vila-museu e estão mais do que atestadas as evidências demonstradas por Santiago Macías, porém, muito mais estará por fazer e quem sabe, daqui a uns anos, a arqueologia se revele ainda mais proficiente e nos brinde com muitos mais mistérios do passado.
(1) TORRES, Cláudio, Arte Islâmica,. Campo Arqueológico de Mértola- Museu de Mértola, Vila de Mértola, 2001, pág. 28.
(2) MACÍAS, Santiago, Mértola Islâmica – Estudo Histórico-Arqueológico do Bairro da Alcáçova (Séculos XII-XIII), Mértola, Campo Arqueológico, 1996, pp. 18-19.
(3) Segundo Santiago Macias a data mais correcta para a construção deste bairro situa-se entre o ano de 1080/90 e 1150, estendendo-se no entanto a sua ocupação até à época da Reconquista (1238), altura em que forçosamente terá sido abandonado.
(4) Do árabe ad-darb, «caminho», in Dicionário de Termos Arqueológicos, Paulo Figueiredo, Lisboa, Prefácio, 2004, pág.5.
(5) No mundo cristão, nomeadamente nas casas camponesas, encontrava-se o paralelo na lareira, espaço central nas habitações destas populações.
(6) ANDRADE, Amélia Aguiar, Um Espaço Urbano Medieval: Ponte de Lima, Lisboa, Livros Horizonte, 1990, pág. 69.
(7) Na opinião do autor também poderia eventualmente ser levada à mesa, embora com uso muito pouco frequente.
(8) GONÇALVES, Iria, “Entre a abundância e a miséria: as práticas alimentares na Idade Média portuguesa”, in Estudos Medievais, Lisboa, Livros Horizonte, 2004, pág. 43.
(2) MACÍAS, Santiago, Mértola Islâmica – Estudo Histórico-Arqueológico do Bairro da Alcáçova (Séculos XII-XIII), Mértola, Campo Arqueológico, 1996, pp. 18-19.
(3) Segundo Santiago Macias a data mais correcta para a construção deste bairro situa-se entre o ano de 1080/90 e 1150, estendendo-se no entanto a sua ocupação até à época da Reconquista (1238), altura em que forçosamente terá sido abandonado.
(4) Do árabe ad-darb, «caminho», in Dicionário de Termos Arqueológicos, Paulo Figueiredo, Lisboa, Prefácio, 2004, pág.5.
(5) No mundo cristão, nomeadamente nas casas camponesas, encontrava-se o paralelo na lareira, espaço central nas habitações destas populações.
(6) ANDRADE, Amélia Aguiar, Um Espaço Urbano Medieval: Ponte de Lima, Lisboa, Livros Horizonte, 1990, pág. 69.
(7) Na opinião do autor também poderia eventualmente ser levada à mesa, embora com uso muito pouco frequente.
(8) GONÇALVES, Iria, “Entre a abundância e a miséria: as práticas alimentares na Idade Média portuguesa”, in Estudos Medievais, Lisboa, Livros Horizonte, 2004, pág. 43.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Amélia Aguiar, Um Espaço Urbano Medieval: Ponte de Lima, Lisboa, Livros Horizonte, 1990, pp. 68-86.
FIGUEIREDO, Paulo, Dicionário de Termos Arqueológicos, Lisboa, Prefácio, 2004.
GONÇALVES, Iria, “Entre a abundância e a miséria: as práticas alimentares da Idade Média portuguesa”, in Estudos Medievais, Lisboa, Livros Horizonte, 2002, pp. 43-64.
KENNEDY, Hugh, Os Muçulmanos na Península Ibérica – História Política do al-Andalus, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1999.
KHAWLI, Abdallah, “Mértola Islâmica: os dados dos textos árabes medievais”, in Arte Islâmica, Mértola, Campo Arqueológico de Mértola, Museu de Mértola, 2001, pp. 25-40.
MACÍAS, Santiago, Estudo Histórico-Arqueológico do Bairro da Alcáçova (Séculos XII-XIII), Mértola, Campo Arqueológico de Mértola, 1996.
TORRES, Cláudio; MACÍAS, Santiago, O Legado Islâmico em Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998.
TORRES, Cláudio, “A Civilização islâmica – última síntese mediterrânica”, in Arte Islâmica, Mértola, Campo Arqueológico de Mértola, Museu de Mértola, 2001, pp. 17-23.