A viagem de Francisco Pyrard Laval
A cidade de Goa no Séc. XVII
A cidade de Goa no Séc. XVII
Marco Monteiro, historiador
As ferramentas de um historiador são muitas vezes escassas e tornam difícil a tarefa de desvendar o melhor possível um passado longínquo que em muito contribuirá para uma melhor compreensão dos factos presentes. No entanto, quando desse passado começam a emergir provas e argumentos credíveis sob a forma de fontes, o historiador começa a sorrir e a partir daí monta gradualmente o seu palco e posteriormente exibe o espectáculo vivido muitos séculos antes do seu.
Apesar das fontes arqueológicas se apresentarem como elementos indispensáveis à compreensão dos aspectos sócio-culturais, políticos e ainda religiosos do passado distante, as fontes escritas laçam-nos numa aventura inigualável e emocionante, transportando-nos directamente aos nossos antepassados, como que uma viajem no tempo. São relatos como os de Francisco Pyrard Laval, um ilustre viajante do século XVI, francês de nascimento e curioso das coisas lusitanas, que nos ajudam a compreender os hábitos de uma civilização, ao ponto de nos sentirmos integrados nesse mesmo passado.
Embarcando numa nau portuguesa da Carreira da Índia em 1610, Francisco Pyrard Laval chegou à Ilha de Goa, onde permaneceu cerca de dois anos. Durante esse tempo, transformou-se num autêntico historiador, centrando a sua atenção para todos os aspectos relacionados com a cidade de Goa e aludindo-nos para a sua importância enquanto capital do Estado da Índia, no século XVII.
Com o relato que este viajante nos deixou, também nós embarcaremos nesta viagem e nos fixaremos em Goa, desta feita analisando os múltiplos aspectos descritos por Pyrard numa época em que Portugal se distinguia nos mares da Índia.
Goa no início do século XVII
Livro das Plantas das Fortalezas, Cidades e Povoaçoes do Estado da India Oriental 1600s.
Situada entre dois braços dos rios Mandovi e Zuari e virada para o oceano Índico, a cidade de Goa representava sem dúvida um ponto estratégico importante, numa época em que o comércio marítimo vigorava e cada vez mais os povos rivalizavam entre si.
Na verdade, os factores mais importantes que elevaram esta cidade a capital do estado da Índia, prendiam-se essencialmente com “...a sua posição estratégica face aos equilíbrios globais do Índico, a sua centralidade comercial...”(1) e obviamente todas as potencialidades próprias desta região indiana.
Esta cidade “mercantil, cosmopolita e assaz tolerante...”(2), foi a eleita por D. Afonso de Albuquerque, sendo reconquistada por este em 1510. Porém, o primeiro homem a superintender os desígnios da Coroa portuguesa na Índia foi D. Francisco de Almeida que exerceu funções entre 1505 e 1509.
Assegurada a base asiática do comércio na Índia depois de conquistada Goa, Malaca e Ormuz, a cidade goesa não mais parou de crescer e mesmo “...a sua configuração topográfica se assemelha à da cidade olisiponense...”(3) . Juntamente com a nomeação do Vice-Rei, são transferidos os poderes administrativos, jurídicos e religiosos, o que facilitava as relações entre os estados no oriente, pois anteriormente seria necessário aguardar que a exposição dos problemas chegassem a Lisboa e posteriormente que a respectiva resolução retornasse ao oriente, demorando mais tempo do que aquele que muitas vezes se impunha.
A cidade de Goa, edificada à beira rio, tornara-se num centro urbano com inúmeras praças que caracterizavam este grande centro mercantil. Segundo Pyrard Laval, a cidade não era muito fortificada e os portugueses não se preocupavam com as ameaças vindas do interior da Ilha “...por razão das passagens bem guardadas em que eles se fiam”(4) . Pela descrição, o viajante refere-se certamente à cordilheira dos Gates Ocidentais que constituíam uma barreira natural às possíveis invasões da Índia Continental.
No decorrer da sua descrição, Laval permite que facilmente se perceba a constituição do poder político e a respectiva distribuição na cidade de Goa, começando por descrever a figura do Vedor da Fazenda que governa na Praça da Ribeira Grande, sendo ele “...o intendente de todos os negócios da fazenda e de tudo quanto em Goa se faz [...] porque é ele a segunda pessoa abaixo do vice-rei.”(5) A criação deste cargo remonta a 1517 e possibilitou a prossecução de uma magistratura capaz de interferir na administração das fortalezas, exercendo a sua jurisdição sobre todos os oficiais da fazenda que nelas se encontravam. As suas funções incidiam na inspecção administrativa, controlando desta feita o cumprimento dos regimentos dos seus oficiais.(6) Seguindo a escala hierárquica, o vedor encontrava-se logo a seguir ao vice-rei.
É curioso verificarmos como Pyrard Laval descreve a figura do vedor, revelando um certo descontentamento relativamente ao exercício das suas funções, uma vez que afirma que “...não há ninguém em Goa abaixo do vice-rei, que possa fazer maior bolsa e roubar tanto como ele”(7), acusando-o de ficar com todas as mercadorias que sobejam nos navios que ali aportam, ajudado pelos oficiais que a ele estavam subordinados (dois meirinhos e um escrivão).
O porto de Goa era indiscutivelmente um local muito movimentado. Como grande centro de comércio oriental, a ele aportavam milhares de navios portugueses e de outras nacionalidades, transformando-o numa área cosmopolita onde as trocas comerciais são fortemente controladas pelos oficiais da cidade. Perto do Hospital Real da Cidade encontrava-se o Cais de Santa Catarina e o Bazar do peixe, onde também embarcavam e desembarcavam toda a espécie de mercadorias, especialmente das armadas portuguesas que se encontravam isentas do pagamento de direitos em Goa. O frenesim provocado pela chegada destas armadas lusitanas era imenso, pois rapidamente as ruas se enchiam de inúmeras pessoas de estratos sociais diversos dispostas a efectuar os seus carregamentos.
Inerente a este comércio hiperactivo e à semelhança da metrópole, encontramos a alfândega, sita na praça do Terreiro, responsável pelo controlo de mercadorias e onde se efectuava o pagamento dos respectivos direitos, e ainda a Casa do Peso, todas elas representativas de uma administração político-económica na cidade.
Ora, afastando-nos um pouco da área comercial, onde pudemos constatar a presença de inúmeras praças e bazares que ganhavam vida com a chegada das grandes embarcações ao porto goês, outros aspectos de índole religioso podem também ser identificados no relato efectuado pelo viajante francês.
A expansão do cristianismo e respectiva evangelização no oriente levou consequentemente à criação de um arcebispado metropolitano, associado a duas novas dioceses, a de Malaca e a de Cochim. Desta feita, os assunto de origem eclesiástica destes estados seriam automaticamente transferidos para Goa ao invés de Lisboa, como anteriormente acontecia, reflectindo desta forma os benefícios da criação deste novo arcebispado, descritos pela Bula Papal Etsi Sancta em 1557.
O arcebispo representava a figura do Papa, na cidade onde Santa Catarina era sua padroeira. De entre os edifícios religiosos, Laval destaca a Igreja da Santa Misericórdia, a Sé, o Convento dos Franciscanos, a capela de Santa Catarina, a Igreja do Bom Jesus pertencente aos Jesuítas, a igreja de S. Tomé, a de Santo Agostinho, São Roque dos Jesuítas, o Mosteiro das Religiosas de Santa Mónica, a Igreja de Santo António, Nossa Senhora do Rosário e finalmente o Convento de S. Tomás. Os jesuítas destacam-se na cidade com quatro igrejas, sendo a principal a da Conversão de S. Paulo, responsável pelo ensino de milhares de estudantes no estado indiano.
Tal como descreve Pyrard de Laval, não existia local algum onde não houvesse uma igreja, o que torna notória a grande missionação levada a cabo no oriente, com o estabelecimento em Goa de diversas ordens religiosas. No entanto, se por um lado a evangelização levou Roma ao oriente espalhando a fé cristã e ajudando os mais desfavorecidos, por outro agoniza as restantes minorias religiosas que por sua fé não se convertiam ao cristianismo. O aparecimento da Inquisição em Goa por volta de 1560 é prova disso mesmo, reprimindo o sincretismo Cristiano-hindu à semelhança do que em Portugal já se fazia, desta feita combatendo o sincretismo Cristiano-judaico.(8)
No tempo do nosso viajante francês, a inquisição era composta por dois eclesiásticos, sendo um deles o inquisidor-mor. Pyrard classifica a justiça do Tribunal do Santo Ofício muito mais severa do que em Portugal, afirmando que queimam com alguma frequência os judeus, vulgarmente conhecidos por cristãos novos. Para além do horror descrito por Laval sobre os actos cometidos pela Inquisição, afirma ainda que os mais perseguidos são os ricos, aqueles a quem o Santo Oficio sentencia com a morte para lhes usurpar tudo o que de bom têm, uma vez que aos mais pobres apenas era aplicado uma penitência desumana, mas poupando-lhes a vida. Todavia, os gentios e os mouros indianos não eram sujeitos à Inquisição, desde que não houvesse lugar a conversão.
Apesar de tudo, a figura do arcebispo era tida em consideração e o mesmo tinha um estatuto idêntico ao do vice-rei, sobretudo no que respeita ao tratamento por Senhoria. O Arcebispo era a única pessoa que tomava as refeições com o representante máximo de Goa, e ao contrário deste saía diversas vezes à rua ajudando os mais desfavorecidos. No tempo de Laval, este arcebispo pertencia à Ordem de Santo Agostinho, promovendo inúmeros Conventos e Mosteiros. Inerente às suas funções, estava também o direito de inspecção sobre a inquisição, recebendo o seu quinhão aquando da confiscação dos bens aos condenados por este Santo Ofício.
Com a diversidade de Ordens Religiosas em Goa seria impossível não existirem conflitos entre elas. Na verdade, parece que o maior litígio era precisamente entre o Arcebispo e os Jesuítas, por estes não reconhecerem a sua superioridade enquanto representante papal em Goa.
Como já foi referido anteriormente, a entidade máxima e representante de el-rei de Portugal em Goa é o Vice-Rei. Inicialmente o vice-rei não possuía residência fixa, permanecendo inúmeras vezes na sua armada, estabelecendo-se posteriormente em Cochim e por último em Goa. Tal como é descrito por Pyrard Laval, este cargo tem uma nomeação por três anos, findo os quais regressa ao reino português, após a chegada à Ilha do seu sucessor. Todo o processo de tomada de posse e exoneração do cargo é precedido de honras militares, onde estão presentes o clero, a nobreza, o povo, a classe de mercadores e artificies que o acompanharão até ao seu palácio. A sua autoridade reveste-se de plenos direitos reais e deverá ser obedecido como se do próprio rei se tratasse. No plano jurídico tem plena competência, incluindo os feitos cíveis e crimes.
Caracterizado por ser uma pessoa não muito sociável, o vice-rei raramente sai do seu palácio, não se familiarizando com pessoa alguma. Quando necessita sair de sua residência, avisa antecipadamente para que os seus fidalgos esperem por si junto do palácio, vestidos a rigor e montados em cavalos bem adornados, expressando este animal um prestígio social associado aos nobres.
Nas procissões e igrejas que visita, o vice-rei faz-se sempre acompanhado do arcebispo e de seu filho que, segundo Laval, será a segunda pessoa a seguir ao vice-rei, uma vez que é capitão de Ormuz e, como tal, pretendente ao cargo de vice-rei da Índia.
No plano das finanças e da economia, todas as despesas relativas ao pagamento de salários dos oficiais do vice-rei e a todos aqueles que o servem directamente são por conta do rei de Portugal, pelo que ganhou a fama de enriquecer durante os seus três anos de mandato, pois não efectua nenhum tipo de despesas. Na realidade, essa é precisamente uma das críticas que o nosso viajante faz, afirmando que “...têm mais cuidado de se enriquecer, do que de guardar e conservar o Estado.”(9)
É uma figura que se enaltece por oferecer grandes recompensas em cargos, rendas e dinheiro a todos aqueles que servem o Estado, sendo estas despesas cobertas pela fazenda real e não por si. No entanto, ajuda os mais desfavorecidos e dá esmolas duas vezes por semana, evidenciando-se aqui uma certa solidariedade por aqueles que eram de nacionalidade portuguesa, pois eram mais beneficiados do que os índios.
Da sua relação com as Ordens Religiosas, sabemos que ao tempo de Laval o vice-rei dava crédito aos Jesuítas e aos Jesuítas Boticários que lhes facultavam os remédios.
Relativamente ao tempo de mandato do representante régio em Goa, a sua substituição ao fim de três anos não agradava muito à povoação goesa, pois achavam que apenas serviria para que outros viessem com a mesma sede ao pote e angariassem tudo o que pudessem durante o seu tempo de mandato. No entanto, el-rei de Portugal achava por bem que assim se processasse, pois receava alguns levantamentos pelo facto de os capitães entrarem um de cada vez, além do mais achava que deveria recompensar todos os seus súbditos pelos serviços que no reino lhe haviam prestado.
Terminando a análise político-religiosa, chegou a hora de olhar genericamente para alguns aspectos sócio-culturais relatados por Pyrard durante a sua estadia em Goa. Na verdade, parece que os portugueses residentes em Goa davam preferência aos exercícios de manejamento de armas e montagem a cavalo, para posteriormente se exibirem nos domingos e dias festivos. No seio da povoação de estratos sociais mais baixos, os jogos destacavam-se como as actividades mais praticadas, ocupando os tempos livres destes populares, tais como as cartas e os dados que, cumulativamente com os jogos de azar tinham locais próprios para serem jogados. O xadrez, o jogo das damas e todos os outros jogos de tabuleiro ocupavam também os tempos livres destas gentes.
O nosso viajante alude ainda para outras actividades, como sejam os farsistas que iludem com serpentes e outros animais exóticos.
No que concerne às actividades meramente femininas, revestem-se de cantorias e toque de instrumentos musicais, mencionando ainda o forte desejo carnal que estas mulheres goesas possuem, utilizando os truques mais imaginativos para conseguirem os seus intentos.
Também em Goa é possível decifrar a presença de escravos que servem os senhores portugueses e que, segundo Laval, são tão mal tratados ao ponto de tentarem fugir inúmeras vezes.
Na verdade, os factores mais importantes que elevaram esta cidade a capital do estado da Índia, prendiam-se essencialmente com “...a sua posição estratégica face aos equilíbrios globais do Índico, a sua centralidade comercial...”(1) e obviamente todas as potencialidades próprias desta região indiana.
Esta cidade “mercantil, cosmopolita e assaz tolerante...”(2), foi a eleita por D. Afonso de Albuquerque, sendo reconquistada por este em 1510. Porém, o primeiro homem a superintender os desígnios da Coroa portuguesa na Índia foi D. Francisco de Almeida que exerceu funções entre 1505 e 1509.
Assegurada a base asiática do comércio na Índia depois de conquistada Goa, Malaca e Ormuz, a cidade goesa não mais parou de crescer e mesmo “...a sua configuração topográfica se assemelha à da cidade olisiponense...”(3) . Juntamente com a nomeação do Vice-Rei, são transferidos os poderes administrativos, jurídicos e religiosos, o que facilitava as relações entre os estados no oriente, pois anteriormente seria necessário aguardar que a exposição dos problemas chegassem a Lisboa e posteriormente que a respectiva resolução retornasse ao oriente, demorando mais tempo do que aquele que muitas vezes se impunha.
A cidade de Goa, edificada à beira rio, tornara-se num centro urbano com inúmeras praças que caracterizavam este grande centro mercantil. Segundo Pyrard Laval, a cidade não era muito fortificada e os portugueses não se preocupavam com as ameaças vindas do interior da Ilha “...por razão das passagens bem guardadas em que eles se fiam”(4) . Pela descrição, o viajante refere-se certamente à cordilheira dos Gates Ocidentais que constituíam uma barreira natural às possíveis invasões da Índia Continental.
No decorrer da sua descrição, Laval permite que facilmente se perceba a constituição do poder político e a respectiva distribuição na cidade de Goa, começando por descrever a figura do Vedor da Fazenda que governa na Praça da Ribeira Grande, sendo ele “...o intendente de todos os negócios da fazenda e de tudo quanto em Goa se faz [...] porque é ele a segunda pessoa abaixo do vice-rei.”(5) A criação deste cargo remonta a 1517 e possibilitou a prossecução de uma magistratura capaz de interferir na administração das fortalezas, exercendo a sua jurisdição sobre todos os oficiais da fazenda que nelas se encontravam. As suas funções incidiam na inspecção administrativa, controlando desta feita o cumprimento dos regimentos dos seus oficiais.(6) Seguindo a escala hierárquica, o vedor encontrava-se logo a seguir ao vice-rei.
É curioso verificarmos como Pyrard Laval descreve a figura do vedor, revelando um certo descontentamento relativamente ao exercício das suas funções, uma vez que afirma que “...não há ninguém em Goa abaixo do vice-rei, que possa fazer maior bolsa e roubar tanto como ele”(7), acusando-o de ficar com todas as mercadorias que sobejam nos navios que ali aportam, ajudado pelos oficiais que a ele estavam subordinados (dois meirinhos e um escrivão).
O porto de Goa era indiscutivelmente um local muito movimentado. Como grande centro de comércio oriental, a ele aportavam milhares de navios portugueses e de outras nacionalidades, transformando-o numa área cosmopolita onde as trocas comerciais são fortemente controladas pelos oficiais da cidade. Perto do Hospital Real da Cidade encontrava-se o Cais de Santa Catarina e o Bazar do peixe, onde também embarcavam e desembarcavam toda a espécie de mercadorias, especialmente das armadas portuguesas que se encontravam isentas do pagamento de direitos em Goa. O frenesim provocado pela chegada destas armadas lusitanas era imenso, pois rapidamente as ruas se enchiam de inúmeras pessoas de estratos sociais diversos dispostas a efectuar os seus carregamentos.
Inerente a este comércio hiperactivo e à semelhança da metrópole, encontramos a alfândega, sita na praça do Terreiro, responsável pelo controlo de mercadorias e onde se efectuava o pagamento dos respectivos direitos, e ainda a Casa do Peso, todas elas representativas de uma administração político-económica na cidade.
Ora, afastando-nos um pouco da área comercial, onde pudemos constatar a presença de inúmeras praças e bazares que ganhavam vida com a chegada das grandes embarcações ao porto goês, outros aspectos de índole religioso podem também ser identificados no relato efectuado pelo viajante francês.
A expansão do cristianismo e respectiva evangelização no oriente levou consequentemente à criação de um arcebispado metropolitano, associado a duas novas dioceses, a de Malaca e a de Cochim. Desta feita, os assunto de origem eclesiástica destes estados seriam automaticamente transferidos para Goa ao invés de Lisboa, como anteriormente acontecia, reflectindo desta forma os benefícios da criação deste novo arcebispado, descritos pela Bula Papal Etsi Sancta em 1557.
O arcebispo representava a figura do Papa, na cidade onde Santa Catarina era sua padroeira. De entre os edifícios religiosos, Laval destaca a Igreja da Santa Misericórdia, a Sé, o Convento dos Franciscanos, a capela de Santa Catarina, a Igreja do Bom Jesus pertencente aos Jesuítas, a igreja de S. Tomé, a de Santo Agostinho, São Roque dos Jesuítas, o Mosteiro das Religiosas de Santa Mónica, a Igreja de Santo António, Nossa Senhora do Rosário e finalmente o Convento de S. Tomás. Os jesuítas destacam-se na cidade com quatro igrejas, sendo a principal a da Conversão de S. Paulo, responsável pelo ensino de milhares de estudantes no estado indiano.
Tal como descreve Pyrard de Laval, não existia local algum onde não houvesse uma igreja, o que torna notória a grande missionação levada a cabo no oriente, com o estabelecimento em Goa de diversas ordens religiosas. No entanto, se por um lado a evangelização levou Roma ao oriente espalhando a fé cristã e ajudando os mais desfavorecidos, por outro agoniza as restantes minorias religiosas que por sua fé não se convertiam ao cristianismo. O aparecimento da Inquisição em Goa por volta de 1560 é prova disso mesmo, reprimindo o sincretismo Cristiano-hindu à semelhança do que em Portugal já se fazia, desta feita combatendo o sincretismo Cristiano-judaico.(8)
No tempo do nosso viajante francês, a inquisição era composta por dois eclesiásticos, sendo um deles o inquisidor-mor. Pyrard classifica a justiça do Tribunal do Santo Ofício muito mais severa do que em Portugal, afirmando que queimam com alguma frequência os judeus, vulgarmente conhecidos por cristãos novos. Para além do horror descrito por Laval sobre os actos cometidos pela Inquisição, afirma ainda que os mais perseguidos são os ricos, aqueles a quem o Santo Oficio sentencia com a morte para lhes usurpar tudo o que de bom têm, uma vez que aos mais pobres apenas era aplicado uma penitência desumana, mas poupando-lhes a vida. Todavia, os gentios e os mouros indianos não eram sujeitos à Inquisição, desde que não houvesse lugar a conversão.
Apesar de tudo, a figura do arcebispo era tida em consideração e o mesmo tinha um estatuto idêntico ao do vice-rei, sobretudo no que respeita ao tratamento por Senhoria. O Arcebispo era a única pessoa que tomava as refeições com o representante máximo de Goa, e ao contrário deste saía diversas vezes à rua ajudando os mais desfavorecidos. No tempo de Laval, este arcebispo pertencia à Ordem de Santo Agostinho, promovendo inúmeros Conventos e Mosteiros. Inerente às suas funções, estava também o direito de inspecção sobre a inquisição, recebendo o seu quinhão aquando da confiscação dos bens aos condenados por este Santo Ofício.
Com a diversidade de Ordens Religiosas em Goa seria impossível não existirem conflitos entre elas. Na verdade, parece que o maior litígio era precisamente entre o Arcebispo e os Jesuítas, por estes não reconhecerem a sua superioridade enquanto representante papal em Goa.
Como já foi referido anteriormente, a entidade máxima e representante de el-rei de Portugal em Goa é o Vice-Rei. Inicialmente o vice-rei não possuía residência fixa, permanecendo inúmeras vezes na sua armada, estabelecendo-se posteriormente em Cochim e por último em Goa. Tal como é descrito por Pyrard Laval, este cargo tem uma nomeação por três anos, findo os quais regressa ao reino português, após a chegada à Ilha do seu sucessor. Todo o processo de tomada de posse e exoneração do cargo é precedido de honras militares, onde estão presentes o clero, a nobreza, o povo, a classe de mercadores e artificies que o acompanharão até ao seu palácio. A sua autoridade reveste-se de plenos direitos reais e deverá ser obedecido como se do próprio rei se tratasse. No plano jurídico tem plena competência, incluindo os feitos cíveis e crimes.
Caracterizado por ser uma pessoa não muito sociável, o vice-rei raramente sai do seu palácio, não se familiarizando com pessoa alguma. Quando necessita sair de sua residência, avisa antecipadamente para que os seus fidalgos esperem por si junto do palácio, vestidos a rigor e montados em cavalos bem adornados, expressando este animal um prestígio social associado aos nobres.
Nas procissões e igrejas que visita, o vice-rei faz-se sempre acompanhado do arcebispo e de seu filho que, segundo Laval, será a segunda pessoa a seguir ao vice-rei, uma vez que é capitão de Ormuz e, como tal, pretendente ao cargo de vice-rei da Índia.
No plano das finanças e da economia, todas as despesas relativas ao pagamento de salários dos oficiais do vice-rei e a todos aqueles que o servem directamente são por conta do rei de Portugal, pelo que ganhou a fama de enriquecer durante os seus três anos de mandato, pois não efectua nenhum tipo de despesas. Na realidade, essa é precisamente uma das críticas que o nosso viajante faz, afirmando que “...têm mais cuidado de se enriquecer, do que de guardar e conservar o Estado.”(9)
É uma figura que se enaltece por oferecer grandes recompensas em cargos, rendas e dinheiro a todos aqueles que servem o Estado, sendo estas despesas cobertas pela fazenda real e não por si. No entanto, ajuda os mais desfavorecidos e dá esmolas duas vezes por semana, evidenciando-se aqui uma certa solidariedade por aqueles que eram de nacionalidade portuguesa, pois eram mais beneficiados do que os índios.
Da sua relação com as Ordens Religiosas, sabemos que ao tempo de Laval o vice-rei dava crédito aos Jesuítas e aos Jesuítas Boticários que lhes facultavam os remédios.
Relativamente ao tempo de mandato do representante régio em Goa, a sua substituição ao fim de três anos não agradava muito à povoação goesa, pois achavam que apenas serviria para que outros viessem com a mesma sede ao pote e angariassem tudo o que pudessem durante o seu tempo de mandato. No entanto, el-rei de Portugal achava por bem que assim se processasse, pois receava alguns levantamentos pelo facto de os capitães entrarem um de cada vez, além do mais achava que deveria recompensar todos os seus súbditos pelos serviços que no reino lhe haviam prestado.
Terminando a análise político-religiosa, chegou a hora de olhar genericamente para alguns aspectos sócio-culturais relatados por Pyrard durante a sua estadia em Goa. Na verdade, parece que os portugueses residentes em Goa davam preferência aos exercícios de manejamento de armas e montagem a cavalo, para posteriormente se exibirem nos domingos e dias festivos. No seio da povoação de estratos sociais mais baixos, os jogos destacavam-se como as actividades mais praticadas, ocupando os tempos livres destes populares, tais como as cartas e os dados que, cumulativamente com os jogos de azar tinham locais próprios para serem jogados. O xadrez, o jogo das damas e todos os outros jogos de tabuleiro ocupavam também os tempos livres destas gentes.
O nosso viajante alude ainda para outras actividades, como sejam os farsistas que iludem com serpentes e outros animais exóticos.
No que concerne às actividades meramente femininas, revestem-se de cantorias e toque de instrumentos musicais, mencionando ainda o forte desejo carnal que estas mulheres goesas possuem, utilizando os truques mais imaginativos para conseguirem os seus intentos.
Também em Goa é possível decifrar a presença de escravos que servem os senhores portugueses e que, segundo Laval, são tão mal tratados ao ponto de tentarem fugir inúmeras vezes.
E assim terminamos esta nossa viagem guiada por Francisco Pyrard de Laval, onde pudemos perceber o quão importante se tornou a cidade de Goa, ao ponto de ganhar o epíteto de “Capital do Estado da Índia”. O seu activo comércio, tornaram esta cidade numa zona próspera, possuidora de um bom porto e com grandes condições de defesa. Foi Goa a cidade escolhida por Afonso de Albuquerque para capital administrativa do Estado da Índia, obedecendo a alguns pontos fortificados em locais estratégicos, que na sua opinião passariam também por Malaca, Ormuz e Adém.
Mal ou bem, os vice-reis, os seus governadores e ainda os respectivos capitães, criaram Goa à imagem do prestígio do reino, “...de maneira que quem houver estado em Goa, pode asseverar ter visto as maiores singularidades da Índia, pois é ela a mais famosa e celebrada cidade pelo tráfico de todas as nações indianas, que lhe levam tudo quanto as suas terras podem produzir, assim em mercadorias, como em mantimentos [...] porque aportam ali cada ano mais de mil navios carregados de tudo...”(10)
(1) SANTOS, Catarina Madeira, «Goa é a chave de toda a Índia». Perfil político da capital do Estado da Índia (1505-1570), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, pág. 94.
(2) THOMAZ, Luís Filipe, “Goa: Uma sociedade Luso-Indiana”, in De Ceuta a Timor, Lisboa, Difel, 1994, pág. 248.
(3) PERCIVAL, Noronha, “Um passeio pela velha cidade de Goa”, in Os Espaços de um Império. Estudos, (coord. Artur Teodoro de Matos), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, pág. 94.
(4) Viagem de Francisco Pyrard de Laval, edição de Joaquim Heliodoro e Magalhães Basto, Porto, Livraria Civilização, Vol. II, cap. III, pág. 34.
(5) IDEM, pág. 35.
(6) SANTOS, Catarina Madeira, «Goa é a chave de toda a Índia». Perfil político da capital do Estado da Índia (1505-1570), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, pág. 304.
(7) Viagem de Francisco Pyrard de Laval, edição de Joaquim Heliodoro e Magalhães Basto, Porto, Livraria Civilização, Vol. II, cap. III, pág. 37.
(8) COSTA, João Paulo Oliveira e, Pastoral Evangelização, Universidade Nova de Lisboa, pág. 41.
(9) Viagem de Francisco Pyrard de Laval, edição de Joaquim Heliodoro e Magalhães Basto, Porto, Livraria Civilização, Vol. II, cap. V, pág. 65.
(10) Viagem de Francisco Pyrard de Laval, edição de Joaquim Heliodoro e Magalhães Basto, Porto, Livraria Civilização, Vol. II, cap. V, pág. 83.
(2) THOMAZ, Luís Filipe, “Goa: Uma sociedade Luso-Indiana”, in De Ceuta a Timor, Lisboa, Difel, 1994, pág. 248.
(3) PERCIVAL, Noronha, “Um passeio pela velha cidade de Goa”, in Os Espaços de um Império. Estudos, (coord. Artur Teodoro de Matos), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, pág. 94.
(4) Viagem de Francisco Pyrard de Laval, edição de Joaquim Heliodoro e Magalhães Basto, Porto, Livraria Civilização, Vol. II, cap. III, pág. 34.
(5) IDEM, pág. 35.
(6) SANTOS, Catarina Madeira, «Goa é a chave de toda a Índia». Perfil político da capital do Estado da Índia (1505-1570), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, pág. 304.
(7) Viagem de Francisco Pyrard de Laval, edição de Joaquim Heliodoro e Magalhães Basto, Porto, Livraria Civilização, Vol. II, cap. III, pág. 37.
(8) COSTA, João Paulo Oliveira e, Pastoral Evangelização, Universidade Nova de Lisboa, pág. 41.
(9) Viagem de Francisco Pyrard de Laval, edição de Joaquim Heliodoro e Magalhães Basto, Porto, Livraria Civilização, Vol. II, cap. V, pág. 65.
(10) Viagem de Francisco Pyrard de Laval, edição de Joaquim Heliodoro e Magalhães Basto, Porto, Livraria Civilização, Vol. II, cap. V, pág. 83.
BIBLIOGRAFIA
COSTA, João Paulo Oliveira e, Pastoral Evangelização, Universidade Nova de Lisboa.
PERCIVAL, Noronha, “Um passeio pela velha cidade de Goa”, in Os Espaços de um Império. Estudos, (coord. Artur Teodoro de Matos), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999.
SANTOS, Catarina Madeira, «Goa é a chave de toda a Índia». Perfil político da capital do Estado da Índia (1505-1570), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999.
THOMAZ, Luís Filipe, “Goa: Uma sociedade Luso-Indiana”, in De Ceuta a Timor, Lisboa, Difel, 1994.
Viagem de Francisco Pyrard de Laval, edição de Joaquim Heliodoro e de Magalhães Basto, Porto, Livraria Civilização, Vol. II.
PERCIVAL, Noronha, “Um passeio pela velha cidade de Goa”, in Os Espaços de um Império. Estudos, (coord. Artur Teodoro de Matos), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999.
SANTOS, Catarina Madeira, «Goa é a chave de toda a Índia». Perfil político da capital do Estado da Índia (1505-1570), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999.
THOMAZ, Luís Filipe, “Goa: Uma sociedade Luso-Indiana”, in De Ceuta a Timor, Lisboa, Difel, 1994.
Viagem de Francisco Pyrard de Laval, edição de Joaquim Heliodoro e de Magalhães Basto, Porto, Livraria Civilização, Vol. II.