O Crime do Padre Amaro
Vera Grilo, historiadora
O Estado Católico Português (1860-1890)
Ao ser efetuado um estudo no âmbito do catolicismo em Portugal, durante as últimas décadas do século XIX, torna-se fundamental inseri-lo numa dimensão mais alargada. Se por um lado, o país sofria a forte influência político-ideológica da Inglaterra e da França, por outro, não deixava de se encontrar, intrinsecamente, ligado ao Vaticano. Aliás, aquando o processo de unificação italiana, o Parlamento, o clero e a imprensa nacionais combateram os princípios republicanos ao lado da Santa Sé. Contudo, devemos considerar as ruturas detetáveis no seio de ambas as diplomacias. Deste modo, é fundamental compreender o papel da Cúria Romana face ao crescente laicismo que tendia a afirmar-se entre os estados católicos. A partir das encíclicas de Leão XIII, a Santa Sé procurou estimular as relações estabelecidas entre a esfera religiosa e a esfera política e, simultaneamente, evitar a progressão do anticlericalismo.
a) Debate entre «Regalistas» e «Ultramontanos» - O sistema liberal pretendia gerir todos os aspetos ligados à estrutura religiosa do Portugal Oitocentista. Em termos jurídicos acabou por vigorar aordem regalista, visando um entendimento entre o liberalismo e o catolicismo. O Regalismo restringia o papel da instituição religiosa ao plano da espiritualidade, salvaguardando a soberania do «Estado Nação». A partir dos debates preconizados por Morais Carvalho e Vicente Ferrer Neto Paiva, compreende-se, que o Estado procurava o controlo do poder clerical, efetuando uma reestruturação das dioceses e intensificando a dependência económica do clero paroquial relativamente à instância política. Verifica-se que ” (…) embora tivessem adquirido a cidadania com a implantação do regime constitucional, os párocos foram semi-funcionarizados”. (NETO, Vítor Parreira in O Estado, a Igreja e a Sociedade em Portugal -1832-1911, pág.117).
Apesar de ser privilegiada a relação entre a Santa Sé e o episcopado português afeto ao regime liberal, assiste-se a uma certa rutura iniciada pelos clérigos ultramontanos (a maioria adeptos da regeneração do Estado absolutista e residentes em aldeias do interior beirão). O ultramontismo, associado à vertente regalista da Igreja, surge, então, como uma doutrina contestada pelo anticlericalismo.
Genericamente, o debate incidia não só na vertente litúrgica e disciplinar condicionadas pelo beneplácito régio, assim como na questão da subsistência da classe sacerdotal. Em 1887, a Irmandade dos Clérigos Pobres foi transformada numa Associação de Socorros Mútuos chefiada por Mons. Elviro dos Santos, tendo como objetivo a reunião do maior número de religiosos, visando combater a sua dependência face aos paroquianos e à ordem fiscal.
No entanto, apesar da insistência com que este assunto foi tratado e mesmo após a lei de separação do Estado da Igreja, as divergências prevaleceram.
b)-O Decreto da Encíclica Cura e do Syllabus- O impacto do Concílio do Vaticano I - Em 1864, a Santa Sé promulgou o presente decreto. Este visava o combate às ideias racionalistas, galicanistas, liberalistas e socialistas. Contudo, as posições entre o clero divergiram. Se, por um lado, alguns clérigos cumpriram a decisão do Ministério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, outros, por sua vez, mantiveram-se fiéis ao sistema regalista.
Perante a instabilidade sentida no seio da religião católica, a autoridade Papal decidiu convocar uma assembleia com dimensão de concílio. Esta, realizou-se entre 1869-1870 e reuniu prelados de todo o mundo. Contudo, em termos nacionais a participação do clero português acabou por ser pouco significativa.
c) Do Clericalismo ao Anticlericalismo – Embora a historiografia associe a data de 1858, mais concretamente, a crise ligada às Irmãs Francesas da Caridade, com o surgimento da visão anticlerical, não é correto circunscrevê-la à Regeneração. O «anticlericalismo» não se restringe a um fenómeno que remonta apenas ao século XIX, muito menos, se confina ao governo do duque de Loulé. Na realidade, apresenta-se como uma vertente indissociada da história religiosa da humanidade. No período oitocentista difunde-se um processo de secularização do poder político aliado ao processo da sua autonomia em relação ao poder eclesial.
Contudo, é importante distinguir o anticlericalismo de cariz liberal do anticlericalismo republicano, difundido nas últimas décadas do século XIX. Se inicialmente, o anticlericalismo se evidenciou no combate ao anticongreganismo, acabou por se alargar a uma tentativa de secularização da sociedade, verificando-se um recurso crescente à propaganda política e jornalística. Com efeito, ” os liberais aceitavam o catolicismo (…) embora atribuíssem características fundamentalmente profanas ao poder público. Os republicanos e socialistas (…) juntavam à crítica ao clero uma oposição à própria religião...”(IDEM, Obr. Cit., pág.321).
Almeida Garret (1799-1854)
Regressando ao anticlericalismo liberal,Almeida Garrett e Alexandre Herculano representaram, ideologicamente, as posições mais proeminentes do mesmo. Garrett idealizava uma religião capaz de se adaptar à ordem política e um sistema político que não hostilizasse o catolicismo. Acreditava que”... não só o espírito do cristianismo como o do liberalismo (…), donde o parecerem-lhe tão conciliáveis quanto necessárias quer uma liberalização do clero quer uma cristianização do liberalismo...” (SERRÃO, Joel, Portugueses Somos, pág.189). No que concerne ao pensamento de Herculano, o mesmo, indica que a crítica feita pelo liberalismo não foi dirigida à religião, tão só, à Igreja enquanto instituição, à prática ultramontista e à estruturação das ordens religiosas, responsabilizando, sobretudo, o absolutismo, o papado, os jesuítas e a Inquisição pelo estado atual da mesma.
Num contexto de impedimento da progressão do clericalismo, e embora malogrando com o 31 de Janeiro de 1891, foi fundada, em 1874, a Associação Liberal de Coimbra.
Num contexto de impedimento da progressão do clericalismo, e embora malogrando com o 31 de Janeiro de 1891, foi fundada, em 1874, a Associação Liberal de Coimbra.
O Valor Simbólico da Obra O Crime do Padre Amaro
Eça de Queiroz (1845-1900)
O estudo do anticlericalismo do século XIX, permite uma abordagem sistemática de um romance que não surge, apenas, como mera representação literária dos valores de uma sociedade burguesa. Todavia, convém ter presente que o texto serve de base à investigação em causa e não como fonte unívoca de um processo de análise crítica.
Entre 1870 e 1871, Eça desempenhou o cargo de administrador do concelho na cidade de Leiria. É provável que desta experiência, tenha obtido informações, suficientemente, naturalistas para a estruturação do romance e da sua própria escrita. Os avanços do positivismo e a afirmação de um racionalismo epistemológico estimulam um maior ceticismo relativamente a uma religiosidade que é vivida de forma retrógrada. “...o escritor recorre a uma poética de intencionais situações de espaço, de objetos e de conjunturas para assim sugerir (…) a sua interpretação da sociedade portuguesa” (PIRES, António M. B. Machado, A Ideia de Decadência na Geração de 70, pág.269). Ora, afigura-se um tempo ideologicamente propenso à observação das principais causas da decadência social. Irremediavelmente, surge uma alusão ao clero secular e à degeneração de um grupo que tende a interferir em todos as esferas da vida doméstica.
Entre 1870 e 1871, Eça desempenhou o cargo de administrador do concelho na cidade de Leiria. É provável que desta experiência, tenha obtido informações, suficientemente, naturalistas para a estruturação do romance e da sua própria escrita. Os avanços do positivismo e a afirmação de um racionalismo epistemológico estimulam um maior ceticismo relativamente a uma religiosidade que é vivida de forma retrógrada. “...o escritor recorre a uma poética de intencionais situações de espaço, de objetos e de conjunturas para assim sugerir (…) a sua interpretação da sociedade portuguesa” (PIRES, António M. B. Machado, A Ideia de Decadência na Geração de 70, pág.269). Ora, afigura-se um tempo ideologicamente propenso à observação das principais causas da decadência social. Irremediavelmente, surge uma alusão ao clero secular e à degeneração de um grupo que tende a interferir em todos as esferas da vida doméstica.
Vista geral da cidade de Leiria, nos finais do século XIX
A obra literária revela, uma imagem de”...Leiria, [...] um buraco claustrofóbico, medíocre e grosseiro [...], onde “...A pequena burguesia, que tudo domina, é ignorante e beata. Os padres apenas pensam em sexo. Os ateus que vão à taberna são igualmente odiosos. A oposição política é tão desprezível quanto os representantes do governo. Os militares são debochados. O povo é feio” (MÓNICA, Maria Filomena, Eça de Queirós, pág.133).
Se, aparentemente, ressalta à vista um quadro social abrangente, na realidade, o cerne do romance fundamenta-se na crítica a um grupo social concreto - um clero constituído por sacerdotes seculares, cujo exemplo de imoralidade estimula o avanço do anticlericalismo. Com efeito, “aos padres, cumpridas aparentemente, estritamente, as obrigações da condição sacerdotal, o tempo sobra para as preocupações com negócios particulares, a satisfação dos apetites à mesa e à cama [...] (BERRINI, Beatriz, Portugal de Eça de Queiroz, pág.36)
N` O crime do Padre Amaro, são tratados assuntos como a religiosidade popular (onde a escola funciona como vínculo transmissor privilegiado do catolicismo), o ensino eclesiástico (sobressaindo a formação seminarista), a confissão auricular, o celibato eclesiástico, as uniões ilegítimas e a dependência financeira do clero face às dádivas dos fiéis e ao financiamento estatal. É ainda, abordada a relação estabelecida entre a igreja e a ciência. Apesar da acentuada dose de ironia presente no discurso de Eça, facilmente, chegamos à conclusão que ”...a laicização das instituições funcionou como apelo (…) em que, não podendo os cristãos contar com as estruturas e práticas religiosas tradicionais, deviam criar soluções adequadas ao novo contexto social e político...” (ABREU, Luís Machado de, Percursos do Oitocentismo Português, pág.49).
Se, aparentemente, ressalta à vista um quadro social abrangente, na realidade, o cerne do romance fundamenta-se na crítica a um grupo social concreto - um clero constituído por sacerdotes seculares, cujo exemplo de imoralidade estimula o avanço do anticlericalismo. Com efeito, “aos padres, cumpridas aparentemente, estritamente, as obrigações da condição sacerdotal, o tempo sobra para as preocupações com negócios particulares, a satisfação dos apetites à mesa e à cama [...] (BERRINI, Beatriz, Portugal de Eça de Queiroz, pág.36)
N` O crime do Padre Amaro, são tratados assuntos como a religiosidade popular (onde a escola funciona como vínculo transmissor privilegiado do catolicismo), o ensino eclesiástico (sobressaindo a formação seminarista), a confissão auricular, o celibato eclesiástico, as uniões ilegítimas e a dependência financeira do clero face às dádivas dos fiéis e ao financiamento estatal. É ainda, abordada a relação estabelecida entre a igreja e a ciência. Apesar da acentuada dose de ironia presente no discurso de Eça, facilmente, chegamos à conclusão que ”...a laicização das instituições funcionou como apelo (…) em que, não podendo os cristãos contar com as estruturas e práticas religiosas tradicionais, deviam criar soluções adequadas ao novo contexto social e político...” (ABREU, Luís Machado de, Percursos do Oitocentismo Português, pág.49).
O Ensino Eclesiástico - A vida no Seminário
A personagem de Amaro permite não só conhecer o ambiente seminarista como focar um conjunto de condicionantes que acabaram por moldar a sua personalidade e acentuar a dimensão espaço temporal onde se encontra inserido. Apesar do liberalismo pretender um controlo efetivo das instituições de ensino, na realidade, só se fez sentir a sua ação a partir da década de 50, aquando a concessão da chamada Bula de Cruzada. Este, encontrava-se não só dependente das contribuições dos fiéis que visavam a obtenção de absolvições, como da gestão pelo Ministério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça. As condições financeiras dos seminários eram fracas e existia, ainda, estabelecimentos onde não era ministrado o ensino preparatório. Denota-se, também, uma certa conflitualidade entre os professores catedráticos da Universidade de Coimbra (docentes das faculdades de Teologia e de Direito Canónico) e as autoridades episcopais. Por outro lado, “...A esmagadora maioria dos seminaristas tinha a sua origem social nas classes camponesas dos meios rurais do norte e do centro” (NETO, Vítor, in Obr. Cit. pág. 188).Para além de uma educação, predominantemente feminina, Amaro recebeu uma formação marcada pela «beatice», sendo desde criança “(…) afeiçoado às coisas de capela, e o seu encanto era estar aninhado ao pé de mulheres, no calor de saias unidas, ouvindo falar de santas (QUEIRÓS, Eça de (et. al), O Crime do Padre Amaro - cenas da vida devota, Lisboa, pág.34)...” .Assim sendo, o seu futuro encontrou-se dependente daquilo que escolheram para si e não da sua própria decisão. Amaro identificava os três inimigos da alma como o «MUNDO, DIABO e CARNE» mas, nem por isso, tinha dentro de si a vocação eclesiástica ou se revoltava face à sua inexistência. Admitia que “...Era padre! Fora aquela infernal pega da Marquesa de Alegros! [...] Abominava então todo o mundo secular – por lhe ter perdido para sempre os privilégios: (IDEM, ibidem, pág.139)
Do ponto de vista teórico a questão do celibato eclesiástico afigurou-se como um dos principais assuntos contidos no seio da polémica anticlerical. O respeito pelas leis da natureza humana acabava por não existir, impossibilitando à classe clerical uma vida sexual tal como o direito ao casamento e à paternidade, dificultando o seu entendimento com a sociedade leiga.
O Clero no Mundo Secular
Largo da Sé de Leiria
Amaro, surge como uma personagem-tipo que encarna o peso da convenção social, tornando-se mesquinho, egoísta e dissimulado. A missa, celebrada na Sé de Leiria transformara-se num hábito. Por vezes, os seus sentimentos confundiam-se entre uma religiosidade profunda e uma sensualidade incontrolável, prevalecendo o conflito entre o amor devoto e a paixão carnal.
Não obstante, a proclamação do Código civil (1 de Julho de 1867), prevalecera o ideal celibatário. Este, por sua vez, conduzia a maior parte dos clérigos à consolidação de uniões afetivas ilegítimas. Outros religiosos mantinham as suas relações mais ou menos disfarçadas. Se, por um lado, o cónego Dias conseguia ocultar a ligação amorosa que tinha há longo tempo com a senhora Joaneira, já o padre Natário não escapava às insinuações do relacionamento com as sobrinhas - «as suas duas rosas». A estimular, ainda mais, a visão anticlerical da sociedade é dado o exemplo do padre Brito, cujo romance com a mulher do regedor era de conhecimento público.
Ao longo do texto é ainda transmitida uma imagem de lascividade, gulodice e sumptuosidade dos gestos e hábitos clericais. Transcrevendo um almoço entre padres verifica-se que ”engasgavam-se de riso. Já duas canecas de vinho estavam vazias: e o padre Brito desabotoara a batina,deixando ver a sua grossa camisola de lã da Covilhã” (IDEM, Ibidem pág.113).
Apenas o «glutão» abade de Cortegaça e, sobretudo, o abade Ferrão constituíam as únicas exceções entre sacerdotes que não primavam pela moral e pelos bons costumes. O primeiro tem apenas um ténue destaque no capítulo VII. O segundo, surge como o modelo ideal de consciência religiosa contrastando, indubitavelmente, com o mundo clerical de Leiria e demarcando-se do padre Amaro. Existe, mesmo, uma certa cumplicidade entre a personagem traçada por Eça e o Pároco da Aldeia criado por Alexandre Herculano. Desde longa data, Ferrão era abade em Ricoça, ou seja, numa freguesia muito pobre onde habitava numa casa em condições precárias. Vivia no meio de gente humilde e ligado à essência da velha religiosidade rural, onde a riqueza dos objetos de culto cedia lugar à rusticidade do estritamente necessário.
Não obstante, a proclamação do Código civil (1 de Julho de 1867), prevalecera o ideal celibatário. Este, por sua vez, conduzia a maior parte dos clérigos à consolidação de uniões afetivas ilegítimas. Outros religiosos mantinham as suas relações mais ou menos disfarçadas. Se, por um lado, o cónego Dias conseguia ocultar a ligação amorosa que tinha há longo tempo com a senhora Joaneira, já o padre Natário não escapava às insinuações do relacionamento com as sobrinhas - «as suas duas rosas». A estimular, ainda mais, a visão anticlerical da sociedade é dado o exemplo do padre Brito, cujo romance com a mulher do regedor era de conhecimento público.
Ao longo do texto é ainda transmitida uma imagem de lascividade, gulodice e sumptuosidade dos gestos e hábitos clericais. Transcrevendo um almoço entre padres verifica-se que ”engasgavam-se de riso. Já duas canecas de vinho estavam vazias: e o padre Brito desabotoara a batina,deixando ver a sua grossa camisola de lã da Covilhã” (IDEM, Ibidem pág.113).
Apenas o «glutão» abade de Cortegaça e, sobretudo, o abade Ferrão constituíam as únicas exceções entre sacerdotes que não primavam pela moral e pelos bons costumes. O primeiro tem apenas um ténue destaque no capítulo VII. O segundo, surge como o modelo ideal de consciência religiosa contrastando, indubitavelmente, com o mundo clerical de Leiria e demarcando-se do padre Amaro. Existe, mesmo, uma certa cumplicidade entre a personagem traçada por Eça e o Pároco da Aldeia criado por Alexandre Herculano. Desde longa data, Ferrão era abade em Ricoça, ou seja, numa freguesia muito pobre onde habitava numa casa em condições precárias. Vivia no meio de gente humilde e ligado à essência da velha religiosidade rural, onde a riqueza dos objetos de culto cedia lugar à rusticidade do estritamente necessário.
Uma Educação moldada pelo Catecismo
- Uma Religião assente no Ritual
Embora seguindo percursos diferentes, a educação de Amélia assim como a de Amaro sofreram as mesmas influências socioculturais.
A educação moral era dada nas escolas primárias ou através do pároco e baseava-se na leitura do catecismo. Amélia surge aos olhos do leitor como uma criatura frágil dominada pelo «mundo beato» que a rodeava e condicionava. Desde criança que convivera com padres e beatas, tornando-se numa adolescente supersticiosa e fatalista. Devido à sua fácil credibilidade deixara-se deslumbrar por Amaro e acabara por se afastar de João Eduardo (noivo com quem já havia combinado os preparativos do casamento).Numa sociedade intelectualmente mal formada, o culto representava a essência da prática devocional. A partir do momento em que se entregara ao pároco, ressurgia, nela, uma antiga devoção em que“ cheia de um fervor sentimental [...] desejaria abraçar, com pequeninos beijos demorados, o altar, o órgão, o missal, os santos, o Céu, porque não os distinguia bem de Amaro (IDEM, Ibidem, pág.127).
A educação moral era dada nas escolas primárias ou através do pároco e baseava-se na leitura do catecismo. Amélia surge aos olhos do leitor como uma criatura frágil dominada pelo «mundo beato» que a rodeava e condicionava. Desde criança que convivera com padres e beatas, tornando-se numa adolescente supersticiosa e fatalista. Devido à sua fácil credibilidade deixara-se deslumbrar por Amaro e acabara por se afastar de João Eduardo (noivo com quem já havia combinado os preparativos do casamento).Numa sociedade intelectualmente mal formada, o culto representava a essência da prática devocional. A partir do momento em que se entregara ao pároco, ressurgia, nela, uma antiga devoção em que“ cheia de um fervor sentimental [...] desejaria abraçar, com pequeninos beijos demorados, o altar, o órgão, o missal, os santos, o Céu, porque não os distinguia bem de Amaro (IDEM, Ibidem, pág.127).
Paula Rego, O Embaixador de Jesus, 1997
Mesmo após o mau trato físico e psicológico que sofreu da parte de Amaro, Amélia continuara a desempenhar o seu papel de mulher submissa, retirando-se para uma aldeia isolada, sofrendo o seu afastamento, e a rispidez de D. Josefa. Para camuflar o pecado que havia cometido, aceitara casar com outro homem. Passou a ser vítima não só de padecimentos físicos (pelos quais acabaria por morrer logo após o parto), como morais - carregava consigo a mágoa pelo destino incerto do filho que trazia no ventre e, ainda, o peso do pecado, pois, “...podia ver ainda, no fundo dos céus, a grande balança- com um dos pratos muito alto onde as suas orações não pesavam mais que uma pena de canário, e o outro prato caído (…), sustentando a enxerga da cama do sineiro e as suas toneladas de pecado” (IDEM, Ibidem, pág.406).
No fundo, assistimos a uma forte crítica à influência negativa que a religião poderia ter no «modus vivendi» dos seus praticantes e à forma como podia manipular todos os seus atos e silenciar todas as suas vontades.
No fundo, assistimos a uma forte crítica à influência negativa que a religião poderia ter no «modus vivendi» dos seus praticantes e à forma como podia manipular todos os seus atos e silenciar todas as suas vontades.
Debate entre a Igreja e a Ciência - A Militância Republicana
Nos anos 70, intensifica-se a crença no poder da ciência e na sua capacidade de resolução de todos os problemas da sociedade. Embora, em Portugal não tenha havido uma contestação radical por parte dos membros da Igreja face ao avanço científico, evidencia-se uma rejeição das principais correntes positivistas. Contudo, algumas elites da Igreja pretendiam a integração no chamado «Modernismo», colocando em questão alguns dos valores católicos. Mas, inevitavelmente, estimularam a oposição papal, expressa sob a forma de um integrismo que procurava sancionar qualquer desvio da ordem estabelecida.
Ao centrar as nossas atenções n´O Crime do Padre Amaro é possívelenumerar alguns episódios sintomáticos de uma aversão ao catolicismo conservador, defendendo a criação de uma sociedade mais realista. Por vezes, a simples rejeição de uma religiosidade não adaptada às exigências do século XIX surge, indistintamente, conotada como anticlerical. Esta conceção evidencia-se ao longo de todo o romance, acentuando-se após a denúncia do «Comunicado» em que João Eduardo é acusado de herege. “este rapaz! Começa por esquecer todos os deveres de cristão [...] associa-se a bandidos, achincalha os dogmas nos botequins [...] publica nos periódicos ataques abjetos contra a religião...” (QUEIRÓS, Eça de, (et. Al), Obr.Cit, pág.275).
No que concerne ao Doutor Godinho, suposto amigo de João Eduardo, acaba por dissimular a sua verdadeira posição religiosa, frisando-lhe que a sua atitude se tratava de uma reprovável ação social.
O Doutor Gouveia, por sua vez, assumido anticlerical, alerta o «escrevente» de que um bom católico como Amélia, deixa de ter vontades ou atitudes porque”...não se pertence; não tem razão, nem vontade, nem arbítrio, nem sentir próprio; o seu cura pensa, quer, determina, sente por ela...” (IDEM, Ibidem, pág.251). Identifica o sacerdote como uma criatura antinatural e antirracional. No entanto, continua a acreditar na renovação político e ideológica, preconizando uma religião moderna conciliando o liberalismo com os princípios da ciência e do progresso.
O Crime do Padre Amaro, representa um verdadeiro jogo de contradições, onde o catolicismo vivido de forma obsessiva conduz a posições, obstinadamente, anticlericais. Por um lado, o autor descreve uma sociedade provinciana, segundo Antero de Quental constituída por “...pobre gente, uma boa gente, vítimas da confusão moral no meio de que nasceram, fazendo o mal inocentemente” (NETO, Vítor Parreira, Obr. Cit. pág.8). Por outro lado, esta sociedade é mordazmente criticada por figuras ideologicamente ousadas que pretendem a secularização e laicidade de todas as manifestações da vida pública, designadamente o ensino, a assistência, culminando com a separação da Igreja e do Estado. Nesta sequência e “Inspirando-se na fórmula de Montalembert “Igreja livre no Estado Livre” retomada criticamente em Portugal por Manuel Nunes Giraldes, em 1870, os republicanos levaram mais longe a tese dos liberais católicos ao pugnarem pela indiferença do Estado em matéria religiosa...”. (IDEM, Ibidem, pág.577).
De certo modo, ainda não vigorava uma união entre o Syllabus e as leis da Constituição assinalando que o progresso civilizacional estava na possibilidade de coexistência entre os valores do Evangelho e o compromisso assumido pelo liberalismo. A realidade do microcosmos provincial aponta para a impossibilidade da religião ser vivida de acordo com a racionalidade da crença.
Sobremaneira, a convergência do positivismo cientista associado à militância republicana acentua a combatividade ao poder da Igreja visto, esta, ser identificada com a monarquia.
Ao longo do texto denota-se uma evolução dentro do próprio anticlericalismo, ocorrendo ”... a paulatina acentuação das diferenças entre o anticlericalismo liberal, ainda crente no renovamento do catolicismo, e o anticlericalismo acirrado pelas deliberações do Concílio do Vaticano I...” (CATROGA, Fernando, Análise Social, Vol. XXIV, pág.223) . Aliás nas últimas páginas o grupo clerical indigna-se “...contra essa turba de mações, de republicanos, de socialistas, gente que quer a destruição de tudo o que é respeitável- o Clero, a instrução religiosa, a Família, o Exército e a riqueza...” (QUEIRÓS, Eça de, (et.al) Obr.Cit, pág.496).
À parte a vertente ficcional, o romance permite postular uma aproximação da realidade objetiva, focando personagens, gestos e lugares que podem adquirir uma certa empatia face ao contexto político-social da época.
BIBLIOGRAFIA
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